Eduardo Cintra Torres

A Tragédia Televisiva Forçada


A emissão espezinhou por completo o livro de estilo anunciado por Rodrigues dos Santos, em que se exige recato nas imagens de morte. No caso da Ponte de Castelo de Paiva, a RTP1 destacou-se por evitar imagens de cadáveres, enterros, e até, com exagero, missas em memória das vítimas. Agora a Informação da RTP1 andou vários anos para trás.

A tragédia televisiva voltou aos ecrãs e à sociedade por causa destas imagens em directo do SportTV: cartão amarelo a Miklos Fehér por atrasar jogo, ele responde com sorriso e encolher de ombros, vira costas, leva mãos aos joelhos e baixa a cabeça, cai fulminado no relvado, de costas, tem um espasmo, morre, acorrem jogadores, viram-no de lado, gritam por assistência, vem assistência, grupo em torno do jogador, jogo parado, massagem cardíaca, chega ambulância, continua assistência em campo, jogadores desesperados, jogador levado pela ambulância.

Quem visse as imagens sabia: isto é a morte do jogador. A morte de um jovem, logo herói, um nosso James Dean (lá o cinema, cá o futebol). A morte no relvado-palco, morte em acção. Morte dum jogador do clube com mais adeptos. Mas, principalmente, morte em directo. Tivesse a morte ocorrido num treino sem câmaras e as comoções, a espontânea e a espicaçada pelo excesso melodramático da TV, teriam sido muito menores. A televisão fez a diferença.

As imagens foram impressionantes porque mostraram a morte de um homem e, através dela, a morte do Homem e a nossa morte, nossa de todos quantos as viram. As imagens com o plano focado exclusivamente em Fehér transcenderam aquele ser humano em particular. O que vimos foi a Morte de foice na mão derrubando um homem cuja hora estava longe de ter soado. Raramente nos é dada a oportunidade de vermos essa velha inimiga em acção. A Morte, tanto como a vítima, foi ali personagem duma tragédia de realidade.

Com o directo no SporTV, havia uma tragédia pessoal e tendencialmente de uma tribo do futebol. A televisão tentou transformá-la numa tragédia nacional. A responsabilidade coube em grande parte à RTP1, que tomou a liderança na selvajaria macabra. Cecília Carmo apresentou uma das mais bárbaras emissões que me foi dado ver em anos: a morte do jogador mostrada vinte ou mais vezes seguidas, bem como o início de alegações de "culpas" em plena tragédia no relvado. A emissão espezinhou por completo o livro de estilo anunciado por Rodrigues dos Santos, em que se exige recato nas imagens de morte.

No caso da Ponte de Castelo de Paiva, a RTP1 destacou-se por evitar imagens de cadáveres, enterros, e até, com exagero, missas em memória das vítimas. R. dos Santos defendeu até ao limite essa decisão editorial. Agora a Informação da RTP1 andou vários anos para trás.

Do ponto de vista jornalístico, este foi um momento negro para a RTP1. Abriu caminho ao estendal de exibição e exploração da morte do jogador nos canais privados SIC e TVI durante os dias seguintes, numa construção melodramática excessiva e autoconsciente desse excesso.

A atitude da RTP1 é tanto mais grave quanto tem a responsabilidade de serviço público e tinha a decorrer o bom exemplo do SporTV, fonte das imagens. No SporTV, Miguel Prates disse, ainda durante o jogo interrompido, que o canal não repetiria as imagens. O realizador da emissão, Ricardo Espírito Santo, disse ao "DN" (28.01) que deu ordens para não se mostrar a cara do jogador morto e concluiu: "este clima de concorrência desenfreada não precisa de ser alimentado com a exploração gratuita da dor". Tendo em conta os excessos macabros e melodramáticos da RTP1 e, nos dias seguintes, da SIC e da TVI, a atitude de Ricardo Espírito Santo e do SporTV é notável e fica como exemplo. A partir de agora não mais se poderá invocar a inexistência de precedentes portugueses de comportamento humano, ético e deontológico nesta matéria. Há. Parabéns ao SporTV.

Estabelecido o padrão pela RTP1 no domingo, a tragédia televisiva desenrolou-se como muitas outras antes.

·Adopção de estilo jornalístico emocional. Infecção do estilo emocional a toda a sociedade, a começar logo nos médicos do Hospital de Guimarães e depois à imprensa escrita e às instâncias de poder, incluindo o poder político.

·Busca de bodes expiatórios (todos falsos, no caso): serviços médicos no campo, ausência de desfibrilhadores, demora da ambulância.

·Transformação da vítima num herói com qualidades superiores às que realmente possuía.

·Heroicização de pessoas relacionadas, em círculos concêntricos: familiares, direcção do clube, adeptos.

·Criação e heroicização da personagem coro, as pessoas na rua, os que à chuva choram e querem ver o morto e querem ser multidão.

·Criação do máximo número de emissões directas, todas ou quase todas sem qualquer relevância informativa. Interrupção da programação normal.

·Tentativa de alcançar ou forjar uma "unidade nacional" ("um país inteiro de luto", titulava a SIC), sem clubes nem partidos, única forma de justificar a tragédia televisiva. A utopia sinistra da "unidade nacional" ocupa o discurso jornalístico e das personagens ouvidas, sejam as "pessoas importantes" ou do coro popular.

·Invocação da linguagem vernácula da tragédia, do destino e do divino.

·Recurso ao modo de expressão melodramático: linguagem excessiva e adjectivada, novo vocabulário (Miklos passou definitivamente a Miki), emoções fortes, arquétipos maniqueístas, música pró-fúnebre nas notícias, imagens ao ralenti ou a preto e branco.

A tragédia televisiva acabou da forma costumeira: com a sua apropriação pelo poder político, simbolizando a retoma do equilíbrio social anterior à tragédia. Não só o governo se associou mais do que o razoável às diversas cerimónias no estádio do clube e na Hungria, como, para mim inesperadamente, o parlamento se associou de forma incrível, com declarações hipócritas ou pirosas, consoante o interveniente, na presença das câmaras. Assim se faz o desfecho da tragédia: começou no domingo à noite num estádio de futebol, e terminou na quinta-feira, com a presença dos representantes do futebol, no estádio da política. Só depois do desfecho José Alberto Carvalho pôde dizer: "A vida continua e a Super Liga também".

Esta tragédia televisiva apresentou uma diferença face a outras como a queda da Ponte ou o 11 de Setembro: não havia razão para ela. A tragédia da vida real que lhe dá origem - a morte de um jogador de futebol durante um jogo - não é um evento que diga respeito a toda a comunidade nem cria uma situação de crise na sociedade e no país. A tragédia televisiva Fehér foi criada pela TV, colaborando com ela o futebol e, por arrasto, instituições que dele dependem, como o Governo da nação. Foi, portanto, uma realidade televisiva mas semi-fictícia na sociedade.

Quando a tragédia é verdadeiramente uma crise nacional, a televisão mitifica-se perante a sua audiência, ganha aura. Quando não é, como neste caso, a televisão generalista desmitifica-se, revela-se. Mais um pequeno passo para a queda.