Eduardo
Cintra Torres
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O Factor Psi |
O século XX foi o século de Freud. As suas teoria e prática científicas marcaram as ciências humanas e a banalidade quotidiana do mundo. Hoje, todos os ocidentais tanto são treinadores de bancada como psicanalistas de café. Analisamo-nos uns aos outros quando queremos ou sem dar por isso com a vulgata das ferramentas de Freud. A vulgarização da psicanálise é também um dos fenómenos mais marcantes da arte erudita e popular do século e prossegue em todos os campos. O sofá do telespectador é uma versão vernácula da cadeira do professor de Viena. Analisando-se ou deixando-se analisar, ei-los no écrã, uns atrás dos outros, homens e mulheres, ricos e pobres, iluminados ou tapados, de todas as cores, orientações, nações e tribos. "Talk-shows" da manhã, tarde e noite, "reality shows" de acção ou paleio, telenovelas, "sitcoms "ou séries dramáticas, entrevistas cultas (Por Outro Lado), ou outras (um programa francês com o convidado no divã, macaqueando a encenação que Freud criou para a análise): em todos os géneros se evidencia o factor psi, quer como elemento normalizado do discurso, quer como elemento assumido de narração. Tomemos os Sopranos. As consultas de Tony Soprano com a Dra. Melfi são um elemento fulcral do "drama giocoso". Primeiro, pelo aspecto exterior, social: há tensão no mafioso que "desce" à vergonha da psicanálise; há tensão na médica, que sente um misto de atracção e medo por Tony; há reacções díspares da comunidade mafiosa ao conhecer o tratamento de Tony, contrário ao estereótipo do padrinho. A psicanálise permite ao personagem conhecer-se melhor... isto, é, permite-nos, a nós, conhecê-lo melhor. Servidas por diálogos soberbos, de primeira categoria em qualquer meio criativo ou época, as sessões de Tony no consultório da Dra. Melfi permitem com harmonia narrativa e diálogos dedicados levar ao ponto máximo da ficção dramática a profundidade psicológica do personagem (Sopranos, quatro séries disponíveis em DVD). Sete Palmos de Terra também já vai recorrendo por sistema à psicanálise na terceira série (2:, segundas-feiras; séries anteriores já em DVD). Um dos cangalheiros, Dave, faz "terapia de casal" com o companheiro, o ex-polícia Keith. A análise serve não só os personagens no interior da intriga, permitindo-lhes tomar decisões, como serve os espectadores na compreensão das suas motivações, fantasmas, problemas. Mas, tal como nos Sopranos, considerar que a análise de vulgata psicanalítica se limita às cenas dialogadas com analistas seria reduzir o impacto do que chamei o factor psi: a auto-análise está presente em inúmeras cenas, pois faz parte do quotidiano das personagens como faz do nosso quotidiano na realidade. Em Six Feet Under, a jovem personagem Claire suscita auto-análises de outros personagens pela sua capacidade de ouvir (é o que faz Ana Sousa Dias). Em Spin City/Cidade Louca (passou na RTP2), Michael J. Fox consultava um psicanalista, e em Once and Again/Começar de Novo (2:, domingos) todos os personagens principais fazem auto-análise para o espectador. Sopranos e Sete Palmos de Terra, como tantas outras séries, aproveitam de forma genial a perigosa herança que Freud nos deixou: racionalizar a escuridão nas nossas almas. * * * Nos últimos anos, as televisões encheram-se de aldrabões que prevêem o futuro, deitando cartas ou palrando acerca dos astros ou por quaisquer outros processos, analógicos ou digitais. O tempo de antena destes bruxos previsionistas é impressionante, mas não vejo ninguém exprimir o mínimo desgosto perante tal festival de trogloditismo civilizacional. Nem mesmo os que se opõem olimpicamente a qualquer presença das várias confissões religiosas na televisão alguma vez lamentaram a exorbitância que as cartomancias adquiriram na TV generalista. Não só há banhas da cobra em diversos "talk-shows" como se vai espalhando a cultura astral e de bruxaria em qualquer tipo de entrevista. A pertença a um signo tornou-se factor de identidade sem hipótese de contraditório em muitos "talk-shows", programas de música pop e pimba, etc. Tem a ver com o país, já se sabe. Um país sempre atrasado. Não acreditamos nas nossas capacidades colectivas nem pessoais. Agora que o catolicismo, nas palavras de Ortega y Gasset, já não é "uma forma integral de vida", entregamos a possibilidade de mudança de vida à bruxa e ao zodíaco. A televisão contribui para esta porcaria de destino. Poderia usar de bom senso, sem exagerar nestes tempos de antena obscurantistas, mas não é o excesso a característica principal da TV do nosso tempo? * * * A audimetria de 2003 indica que aumentou o tempo de visão de TV em todos os departamentos: TV generalista e TV por cabo. O aumento da generalista (9,6 por cento) é duvidoso: em 2003 fizeram-se alterações no painel de audimetria, com o assentimento dos operadores e outros interessados (mercado publicitário), resultando disso o previsível aumento da audiência da TV generalista. Trata-se, portanto, de uma vitória de secretaria, que permite aos operadores generalistas respirar um pouco: aumentando o número dos que vêem TV (aliás, anúncios), aumenta o total de "contactos" pagos pelos anunciantes. À conta disto, os operadores generalistas acabaram o ano a bater palmas. Mas é uma vitória de espirro: metem o ranho para dentro mas não evitam a constipação. Dada a mudança no painel, é difícil poder confirmar-se se o aumento corresponde à realidade. A tendência dos anos anteriores era a contrária, marcada por uma dupla queda: menos visão de TV em geral e em especial da generalista. Contrastando com os 9,6 por cento da generalista, houve aumento significativo no "rating" de cabo, vídeo e satélite: 28,6 por cento. Mesmo que haja alguma inflação pela razão apontada, o número é expressivo. Os espectadores dedicaram mais um terço do tempo à televisão por cabo que no ano anterior; o aumento é o triplo do da generalista. Ano após ano, aumentando o interesse pelos canais alternativos, as audiências têm avisado os operadores generalistas. E os operadores fazem orelhas moucas e afunilam a sua programação até à monocultura telenovelesca luso-brasileira. Os operadores generalistas já quase não põem dinheiro em programas diferentes, ousados e criativos. Raros são os novos programas em que uma centelha de criatividade rasga o manto do miserabilismo de meios. Não é um exclusivo da santa terrinha. O problema é o mesmo nos EUA, Espanha, França, GB. Mas por cá nota-se mais cedo, porque o nosso mercado televisivo parece um "minimarket" algarvio no Inverno. Num tão pequeno mercado, é mais difícil chegar-se à qualidade e mais fácil patinar na mediocridade. Neste fadário, não há Freud nem bruxa que nos valham. |