Eduardo Cintra Torres

Levanta-te Daí


O título desta crónica reúne os seus dois temas: o programa Levanta-te e Ri e as imagens da detenção de Saddam Hussein.

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Havia dois tipos de humor na TV portuguesa: o revisteiro, na variante Fernando Mendes, Camilo, Malucos do Riso e Herman José; e o das Produções Fictícias, empresa que dá emprego a bastantes humoristas das gerações seguintes. A morte anunciadíssima do humor revisteiro levou à valorização do humor daquela empresa, que em breve alcançou um quase monopólio, com trabalhos na SIC, RTP, "Expresso", "A Bola", "Record", "DN", agora no PÚBLICO, no teatro, rádio, etc. O quase monopólio é perigoso para todos, a começar pelos próprios: se vemos o mesmo em todo o lado, fartamo-nos. O humor desta empresa tem qualidades, mas também defeitos: é muitas vezes apressado, preguiçoso e virado para dentro, como se a auto-satisfação dos autores e do pequeno mundo lisboeta em que se movem fosse suficiente para julgarem ter graça universal.

Quebrando o molde, a SIC apresenta desde há um ano Levanta-te e Ri, em produção própria, mas onde estão alguns colaboradores da empresa Produções Fictícias. O programa evoluiu bastante, e para melhor. Hoje, destaca-se na pobre TV portuguesa.

Começou como palco de anedotas num pseudo-bar em estúdio. Quase falida, a SIC optou por pôr actores contando anedotas básicas e velhas. Alguns deles vinham dos Malucos do Riso. Programas como o Levanta-te e Ri vêem-se na TV britânica há anos, mostrando centenas de pessoas que fazem "stand-up comedy" em tudo o que é sala de espectáculo. Mas não havia nada disto em Portugal.

O Levanta-te e Ri é hoje feito em plateias pelo país - e sempre em directo - ao fim da noite, com bolinha que avisa do tom forte. Em vez das anedotas compradas e decoradas por actores, baseia-se agora num conjunto de jovens humoristas que fazem "stand-up comedy" e que são, em grande medida, autores dos seus textos. Estes humoristas aprenderam o ritmo da "stand-up comedy". Supriram uma falta que mencionei há um ano, desenvolvendo a expressão corporal necessária a um monólogo num palco, a caminho da representação teatral. Romperam com o humor que até agora dominava a TV. São politicamente incorrectos. São insolentes. Não respeitam vacas sagradas. E vários deles têm muita graça.

Tal como nos EUA e GB, fazem piadas "ad hominem", deslocando para o terreno da gozação total as "celebridades" que vivem sob falsas premissas, criadas e protegidas por uma imprensa cor-de-pirosa. Pela primeira vez em décadas há um humor que enfrenta sem receio nem piedade os ridículos, a mesquinhez, a incompetência e a falsidade do meio político, artístico, desportivo. Isto é importantíssimo.

Espero que não voltem atrás, não queiram ser "consensuais" com receio de perderem público, como me parece que dizia um deles, Francisco Menezes, entrevistado por Laurinda Alves (SIC Mulher). É por serem insolentes que têm a casa cheia. Mais vale correrem o risco da censura. "Hoje, se não és censurado, és um cómico da série B", disse há dias um novo humorista italiano de grande sucesso, Fiorello. Os humoristas do Levanta-te e Ri estão no caminho certo porque, neste pequeno país de ofendidinhos, em vez de optarem pela comicidade polémica fazem uma comicidade espectáculo, que lhes garante mais público e evita processos. Eu não gostava do título do programa, mas agora aprecio a referência a um país de 10 milhões de mortos que se levantam e recomeçam a rir sem limites com as performances de Nilton, Marco Horácio, Serafim, Aldo Lima, Francisco Menezes, Bruno Nogueira (que se destaca pela proeza fantástica de conseguir êxito popular com um registo inteiramente irónico), Ricardo Araújo Pereira, Zé Diogo Quintela e outros.

E vai ficando desajustado o humorista que garantiu o êxito do programa: Fernando Rocha. Boçal, faz ao público a catarse de o pôr a gritar palavrões... em público, palavrões que ele diz em avalanche. Talentoso palhaço contador de anedotas, é limitado no humor - e nos palavrões, já agora. O seu programa na SIC, Ou Bai ou Rocha, era paupérrimo e boçal, tendo terminado sem glória. Mas pode manter-se no Levanta-te e Ri porque o seu registo básico cria empatia com a audiência, abrindo a outros públicos; o programa corre mesmo assim um risco se os comediantes se centrarem todos no mesmo tipo de humor, a audimetria revela que o Levante-te e Ri é quase só para homens, deixando de fora metade do mundo.

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As imagens da detenção de Saddam são das mais importantes do ano. Tentemos esquecer o que somos culturalmente e ver nas imagens tão-somente o que lá está, os referentes: um homem com mais de 60 anos, barba e cabelo desalinhados, colaborando numa observação médica; outro homem, de bata branca, luvas de borracha e cabelo rapado, espreita-lhe o couro cabeludo e, com espátula adequada, boca, língua e garganta. Outro plano mostra o homem sem falar, levando a mão livre à cara, sem exprimir emoções positivas ou negativas. São grandes planos, como os das telenovelas: só vemos a cabeça, podemos reconhecer o homem. O fundo, de azulejos quadrados, sugere hospital. Depois, vêmo-lo de barba e cabelo cortados.

Outras imagens: o buraco na terra em que dormia e de onde a tropa americana o levantou, em imagens nocturnas, depois, diurnas; o local na casa ao lado, com pouca higiene, onde comia e se lavava.

Reacção: os "americas" quebraram as convenções de Genebra, pois Saddam é prisioneiro de guerra. Será? A guerra acabou. Saddam não age como militar. Será entregue a um tribunal iraquiano, não um tribunal da força invasora e administrante. Portanto, as imagens são legítimas.

Um cardeal do Vaticano disse que as imagens mostravam Saddam tratado "como uma vaca"; Sousa Tavares fez-se eco e disse "como um animal". São comentários extraordinários porque os referentes das imagens mostram exactamente o contrário: mostram que Saddam impôs a si mesmo uma vida de animal, dormindo debaixo da terra e sem cuidar do corpo; e mostram-no tratado como um ser humano, observado por um médico - com quem colaborou - barbeado e rapado para recuperar a dignidade da aparência.

Este foi um caso exemplar de que as imagens não estão "lá", mas sim nos nossos olhos. Onde um vê moinhos, outro vê gigantes. Ou, como escrevia Almada Negreiros num desenho de 1926: "Os olhos são para ver e o que os olhos vêem só o desenho o sabe." Eu, por exemplo, vi um médico careca à procura de piolhos de destruição maciça na cabeça de Saddam. Poderá ser? Só as imagens o sabem.