Eduardo
Cintra Torres
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Crónica Florentina |
Férias: desligar ou apenas partir? As férias começam com um belo concerto de jazz vocal no CCB, com Curtis Steiger, que a nossa imprensa ignorou (ele não está ligado a grandes editoras). Depois, parto para Florença, a enfrascar-me em beleza, lavando o Olho Vivo com um dilúvio de colírio artístico. Mas não me é possível partir esquecendo. Lá estou cá. O avião vai cheio de portugueses, que nos aviões só lêem o PÚBLICO e o "Diário de Notícias". Perco-os de vista no aeroporto de Milão. Não os vejo em Florença. O táxi deixa-me junto da igreja e convento de S. Maria Novella, num hotel marcado pela arquitectura da cidade. O televisor, minúsculo, tem quase toda a oferta de canais dessintonizada. Melhor assim. Há uma patente esquizofrenia entre a televisão italiana, de Estado ou privada, explosivamente "kitsch", e esta cidade onde a beleza salta em cada esquina para dentro daquele que passa. Bem pode a televisão gabar-se de estar colada à realidade, que aqui eu vejo-a como a um exército de espectros de um submundo colorido, cheio de gnomos ébrios de histeria feliz em estúdios-esgotos pintados de cores berrantes. Essas cores são o pesadelo inverso das cores que desde o final da Idade Média abençoam palácios e igrejas de Florença. As imagens remetem sempre para outras imagens. E as do passado para o presente. Nos frescos e nas telas florentinas as histórias bíblicas sucedem-se umas às outras lado a lado, por cima e por baixo nas paredes e nos tectos, e dentro de uma mesma obra. Em alguns casos, os episódios são separados, como na história de Cristo em quadradinhos de Fra Angelico no Museu de San Marco: 36 pequenas telas quadradas, sugerindo a última, com uma árvore de dizeres religiosos, a ficha técnica dos filmes. Noutros casos, os artistas cuidavam de num mesmo espaço organizar os vários episódios numa sequência narrativa perceptível aos olhos de então: se S. Pedro aparece três vezes, é porque a mesma tela inclui três episódios. Se no fresco ao lado S. Pedro surge noutros episódios, é porque a sequência narrativa precisava de um intervalo espacial, como sucede na magnífica Capela Brancacci, pintada principalmente por Masaccio em 1426-28. Na pintura, o movimento e o som são transmitidos nos seus contrários, a imobilidade e o silêncio, dois valores que o presente tem mais dificuldade em aceitar. Cada grupo de visitantes só pode estar 15 minutos na capela apreciando a arte de Masaccio, Masolino e Fillipino Lippi. Mas, ao lado, no refeitório do convento, pode ver-se durante quase uma hora um vídeo sobre os frescos na capela. O filme chama-se "O Olho de Masaccio" e aprofunda a compreensão da arte e da técnica do pintor toscano, em especial aos que desconhecem ou esqueceram os episódios da Bíblia. O que me impressionou no vídeo foi a necessidade sentida pelos seus autores de fazer centenas de "zooms" sobre os frescos, para trás e para a frente, panorâmicas da direita para a esquerda e vice-versa, de cima para baixo e vice-versa, e tudo completado com banda sonora de ruídos urbanos e conventuais e de música sacra e profana. O filme não tinha um momento de imobilidade e de silêncio. Tempos modernos. Foi por aceder a esta dupla "superioridade" das modernas tecnologias mediáticas e artísticas - o som e o movimento - que o americano Bill Viola pegou em temas perenes da pintura ocidental, como a Visitação, a Descida da Cruz ou as Mulheres junto do Túmulo, e os transformou em instalações vídeo, na exposição "The Passions", patente na National Gallery, em Londres, até 4 de Janeiro. (O excelente documentário "Bill Viola", de Mark Kidel, 2003, exibido na National Gallery, passou no ARTE na sexta-feira. É ele mesmo que fala dessa "vantagem" sobre os antigos.) Viola pode mostrar o movimento numa unidade temporal, o que os pintores renascentistas que ele invoca tinham de fazer desdobrando-o espacialmente. Destacam-se "The Greeting", de 1995, que remete para a Visitação pintada por Pontormo (1528-9), em Carmignano, perto de Florença, e uma magnífica "Emergence", projectada à escala de uma peça de altar, que remete para uma "Pièta" de Masolino (1424); as outras criações de Viola nesta exposição não convencem. Os seus actores, que sofrem em câmara lenta em écrãs LCD, não transmitem a mesma dor da pintura religiosa porque, ao contrário desta, não remetem para nenhum drama que o espectador conheça. Não provocam compaixão. Ver pessoas exercitando a dor sem razão torna-se um bocado estúpido e as instalações vídeo ficam estranhamente incompletas apesar do movimento e do som de fundo, o qual é mais importante do que parece ao observador. Por outro lado, as instalações vídeo não se destacam o suficiente do que o cinema e até a televisão já realizam. E, se não tiverem o sentido da pintura, dificilmente transpõem a fronteira movediça da transcendência artística, como o faz esplendorosamente a "instalação" visual de Masaccio na Capela Brancacci. (esta crónica termina amanhã) |