Eduardo Cintra Torres

Ventos, Eventos, & Inventos II


Os indivíduos libertados de hoje, por mais intensa que seja a sua individualidade, não vivem sem um Nós em que se integrar. Precisam de partilhar imaginários, prazeres, desejos, sonhos, precisam de festas e de chorar em conjunto, precisam de "eventos"

Como resolve a TV generalista a aparente contradição entre esses dois movimentos concomitantes nas sociedades contemporâneas, a individualização e a tribalização? Através dos "eventos". Os eventos televisivos. Assistimos a uma crescente "eventificação" da televisão generalista. Os "eventos" são as "flash mobs" da programação generalista.

A quebra e a segmentação das audiências e a crescente concorrência do cabo, da internet e doutras actividades alternativas levam a TV generalista a procurar soluções de manutenção do seu estatuto, isto é, ser do máximo número, com programação variada e vibração do usufruto instantâneo, o "estar a ver", o directo. A TV generalista quer ser um "mass media" numa era em que acabaram as massas.

Arredada do directo durante anos, a TV generalista regressa às origens e acentua-o. Até já voltou a publicidade em directo, que a RTP conheceu nos anos 50. Na primeira cena do primeiro Santos da Casa, na RTP1, uma série de vaudeville em directo, a actriz que fazia de criada levantou bem alto dois sacos de plástico do supermercado patrocinador sob os aplausos do público.

Os telejornais passam a incluir inúmeros directos inúteis enquanto informação: as notícias-eventos. Comunicam sem informar. Pobres repórteres nos locais, que têm de responder aos apresentadores com frases como "Não, não há nada de novo, mas deixa-me acrescentar que...". Ao nada acrescenta-se o nada.

Todos os pretextos servem para eventos e inventos: seja o episódio nº 5000 duma telenovela, uma partida desportiva para as tribos clubísticas, um ocasião festiva ou lutuosa da pátria. A Praça da Alegria feita à noite junto a obras nos acessos ao novo e ainda fechado estádio do FCP simboliza estes "eventos": parecia uma feira de saltimbancos fora das muralhas concelhias. Nunca uma TV generalista, muito menos do Estado, inventara um evento daqueles. As 15 horas do "novo estádio" constituíram o zénite da "eventificação" da TV generalista em Portugal no que toca a entretenimento. Quanto à comunicação pseudo-informativa, o zénite foram os directos da chegada a Lisboa e ao hospital da jornalista Maria João Ruela.

Os "inventos" são hoje uma bóia de salvação da TV generalista. Simulam a ideia de "ligação" ao espectador, reproduzem à exaustão um modelo de programação a que o espectador se habituou dos grandes acontecimentos políticos e desportivos.

Antes, um evento eram os Jogos Olímpicos, um funeral de Estado. Agora, um "evento" é a festa nas obras do estádio ou um showzito "live" das Docas ou da Praia de Não-Sei-Onde. Volta o entretenimento caseiro em directo e com público, como Santos da Casa, Levanta-te e Ri (SIC) ou Vidas Reais (TVI). Até a meteorologia é hoje "eventificada". Vem o calor e faz-se uma "vaga de calor" em directo. Cai um floco de neve e lá vão eles em reportagem para as terras altas. Há dias, sobre o jornalista apresentador do Bom Dia Portugal foi sobreposto um plano simulando neve a cair no estúdio da RTP1.

Os eventos, mesmo se inventos, visam criar a diferença: o que distinguiria hoje a TV generalista da temática se não fossem os eventos? Terrível constatação: quase toda a programação generalista desde a sua fundação é hoje reproduzida, muitas vezes com vantagem, na TV temática: noticiários, entrevistas, documentários, séries, desporto, "talk-shows", filmes, debates, programas infanto-juvenis, desenhos animados.

A ficção torna-se um difícil desafio para a TV generalista. Nos EUA, as melhores séries estão no cabo, onde há continuidade na produção. Em França, cheia de "TV realidade", uma reportagem da A2 (TV5, quinta) indicava que a "reality" é mais barata que a ficção, com retorno imediato do investimento.

Pouco resta aos generalistas de identitário, à excepção da variedade (mas para que serve ela se há "zapping"?), da capacidade de chegar a mais espectadores em simultâneo do que os outros canais e à excepção dos eventos e dos "inventos".

Os indivíduos libertados de hoje, por mais intensa que seja a sua individualidade, não vivem sem um Nós em que se integrar. Precisam de partilhar imaginários, prazeres, desejos, sonhos, precisam de festas e de chorar em conjunto, precisam de "eventos".

O Carnaval de antigamente, festa de transgressão com data marcada, perdeu sentido porque o carnaval é agora quando um indivíduo quiser. Na sociedade contemporânea vive-se a carnavalização ininterrupta, viabilizada pela democratização política e social e pela abundância de recursos e tempos livres: há sempre festa e gente disponível para interromper o ritmo do quotidiano. A carnavalização tornou-se um estado normal e contínuo, e não de excepção. "O carnaval tornou-se espectacularizado, o objecto do olhar fixo, remoto e sentimental, duma ampla audiência", escrevem Peter Stallybrass e Allon White em "The Politics and Poetics of Transgression" (Londres, Methwen, 1986).

Há muito que a sociedade do espectáculo e do consumo transformou o Natal em carnaval, com as iluminações feéricas, compras, espectáculos, festas e comeres. Quem fará a árvore "de Natal" mais alta do mundo? A TV mostrou a do Rio de Janeiro e a do Rockefeller Center. Há alguns anos, a carnavalização do Natal espelhava-se numa promoção do então Sky Movies à sua programação da quadra: um travelling lento ia descendo pela árvore enfeitada e nas grandes bolas de cores iam-se vendo extractos dos filmes programados, todos eles de extrema violência. O efeito surpresa dizia ao espectador para assumir sem hipocrisia que a época natalícia está desligada da sua razão original e para a transformar num período de feriados como outro qualquer. O Pai Natal, de saco consumista às costas, gordo e de vermelho, inventado pela Coca-cola, ganhou ao menino Jesus, nu e "Em palhas deitado / Em palhas dormindo", como dizia uma canção tradicional que cantávamos lá em casa.

A RTP1 dedicará ao Natal 200 horas de emissão, das quais 100 em directo, em "eventos": mais de quatro dias, 24 horas por dia, a "eventificar" o Natal. Trata-se, neste caso, dum esforço significativo para dar "eventos" aos pobres, que são quem vê a TV generalista em primeiro lugar. Os "eventos" televisivos são "a noite" e as festas dos pobres fechados em casa.

Mas os pobres não interessam à maior parte da publicidade. Por isso a TV generalista, incluindo a comercial RTP1, fornece eventos sucessivos para recuperar, na forma de tribos carnavalescas, os indivíduos intensos que se lhe escapam mais e mais para outras formas de alimentarem o Eu. Este facto social tem consequências profundas na programação generalista, cada vez mais afastada do modelo dos anos 70-90, baseada em produtos perenes, e mais próxima do modelo dos anos 40-50, baseada na comunicação em directo do estúdio.