Eduardo Cintra Torres

Ventos, Eventos, & Inventos I


Uma programação "ontologicamente" generalista torna-se irracional (no mínimo um pouco tola) se poucos a estiverem a ver: uma coisa é o primeiro Big Brother e milhões a falarem dele. Outra coisa é o Big Brother 4, com audiências desastrosas, e Teresa Guilherme continuando a dizer "os portugueses votam..." como se andássemos todos à volta daquela fogueira. Parece maluca.

Os ventos de mudança nas nossas formas de vida têm implicações em todas as actividades e negócios. A televisão, com um sistema nervoso à flor da pele, conhecendo os nossos hábitos de consumo da véspera, sabendo o que escolhemos dentro das nossas casas, reage rapidamente aos nossos impulsos subterrâneos - as verdadeiras revoluções comportamentais e sociais - e tenta responder-lhes, às vezes atabalhoadamente.

E as nossas formas de vida revelam dois movimentos que parecem contraditórios. Por um lado, a "sociedade dos indivíduos". O sociólogo alemão Norbert Elias escreveu em 1939 um texto com esse título sobre a crescente individualização das relações humanas. No ano em que começava a guerra mundial e o nazismo esmagava o individualismo dos outros, o mundo não estava preparado para o texto de Elias. Ficou inédito e só veio a ser desenvolvido e publicado em 1987. O desinteresse geral por este livro permitiu-me comprá-lo em 1998, numa loja Yellows, onde estava num caixote, a monte, por 500 escudos ("A Sociedade dos Indivíduos", Lisboa, Dom Quixote, 1993).

A sociedade dos indivíduos conquistou terreno no atlas do planeta político-social década após década. Depois das quedas dos fascismos e das democracias dirigistas, a queda do Muro de Berlim marca o avanço do predomínio do Eu sobre o Nós em grande parte do mundo. No século XX, conquistámos um espaço crescente para cada sujeito, apresentando-se o individualismo como que um cume no desenvolvimento dos humanos. "Preciso de espaço", dizia um fado dos anos 60. O eu racional quer sempre mais. Eu penso, logo insisto. As vantagens da afirmação do sujeito parecem evidentes, mas ela coloca problemas a essa maçada que é tudo o resto, tudo o que faz as sociedades organizadas. O sociólogo alemão (serão sempre alemães?) Ulrich Beck estudou este tema com Elizabeth Beck-Gernsheim num livro que não está traduzido em português ("Individualization: institutionalized individualism and its social and political consequences", Sage, 2002).

Os autores defendem que vivemos uma mudança fundamental na natureza da sociedade, girando sobre dois eixos: a globalização e a individualização. Esta última é uma característica estrutural das sociedade diferenciadas, mas não põe em perigo a coesão social. Todavia, provoca alterações nas formas de vida; por exemplo, na organização familiar, dado que a família pressupõe a desigualdade entre homens e mulheres.

Tentei averiguar o que esta "intensividade do indivíduo" implica com os hábitos televisivos num texto a publicar na revista "Análise Social" ("Televisão do eu e televisão do nós - A encruzilhada da televisão generalista"). Um indicador simples é o do número de televisores em casa: num inquérito a jovens que realizei com a preciosa ajuda de professores nos distritos de Portalegre, Lisboa e Setúbal apareceu na semana passada uma família de três pessoas com sete televisores em casa. Cada indivíduo vê o que quer e vê até dois programas em simultâneo, como referiu um dos inquiridos sobre a sua irmã.

Este crescimento do Eu obriga a televisão generalista a repensar-se, pois ela foi inventada como "mass media" numa época de massas: a transmissão simultânea permitia "transformar a nação num só homem", como referia o futuro primeiro director-geral da BBC, John Reith, ainda no tempo em que só havia a BBC rádio. Uma programação "ontologicamente" generalista torna-se irracional (no mínimo um pouco tola) se poucos a estiverem a ver: uma coisa é o primeiro Big Brother e milhões a falarem dele. Outra coisa é o Big Brother 4, com audiências desastrosas, e Teresa Guilherme continuando a dizer "os portugueses votam..." como se andássemos todos à volta daquela fogueira. Parece maluca.

A diminuição de audiência da televisão generalista e o aparecimento de inúmeras alternativas, a começar pela televisão temática, estão na origem de inúmeros tiros ao lado na programação dos canais generalistas, seja em Portugal ou noutros países. Neste momento, há um conflito entre a empresa de audimetria Nielsen e as "networks" generalistas americanas sobre o "desaparecimento" de parte dos homens dos 18 aos 34 anos das audiências de TV.

Em simultâneo com a individualização, e retomando o início deste artigo, há um movimento que parece contraditório com ela: a retribalização, ou melhor, "o regresso das tribos". Foi estudada em 1988 pelo sociólogo francês Michel Maffesoli (não, não são todos alemães), defensor de uma sociologia da vida quotidiana, em "Le Temps des Tribus" (Paris, Petite Vermillon, 2000). Segundo Maffesoli, a cultura de massas desintegrou-se e a existência social faz-se através de agrupamentos tribais fragmentados, organizadas através de palavras-chave, marcas e "sound bites".

Uma recente manifestação desta necessidade de indivíduos intensos estarem juntos é a tolice das multidões instantâneas ou "flash mobs", grupos de pessoas que se encontram sem qualquer objectivo "racional" e fazem uma manifestação inofensiva e carnavalesca, imitando passarinhos ou adorando um dinossauro de brinquedo numa loja. Nem por acaso, a televisão adorou as "flash mobs". Em Portugal, a primeira multidão instantânea só reuniu três pessoas, mas teve direito a reportagens televisivas nos telejornais. Talvez tenha sido a manifestação mais pequena da história da Humanidade, mas não foi por isso que as televisões generalistas lá foram: queriam aquele carnaval em Setembro. Os manifestantes eram três, as câmaras de televisão também: "os jornalistas eram tantos que até faziam confusão ao andar de um lado para o outro à procura das pessoas", escreveu um dos três "flash-mobbers" no seu "blog".

O facto de Maffesoli ter escrito, dois anos depois, um livro sobre o crescente individualismo da sociedade contemporânea ("Du Nomadisme", Livre de Poche, 1997) serve como sinal de que os dois fenómenos - individualização e tribalização - ocorrem ao mesmo tempo.

(Termina na próxima segunda-feira)