Eduardo Cintra Torres

Televisão em Forma de Livros


O facto de as formas de vida no mundo actual tenderem para a entretenização deveria levar os pedagogos a encontrarem formas mais activas de ensinar, mas não à custa dos conteúdos.

Ao contrário do que dizia uma manchete recente do "24 Horas", o Big Brother (BB) ainda não morreu. Moribundo nas audiências, está, porém, bem vivo, e por mais dois anos, no novo "best-seller" dos manuais de Português do 10º ano, editado pela Porto Editora.

Os autores do manual concretizaram da pior forma o ensino da expressão da língua tal como indicado no programa escolar do governo anterior. Foram incompetentes. Se já é um insulto pedagógico ensinar o manejo da língua através do BB, fazê-lo através das "regras" do "concurso" holandês é mais grave ainda.

Nem os jovens nem os seus educadores esperam da escola que desça tão baixo. Pelo contrário, o contrato ético e pedagógico da sociedade com a escola é que ela ensine aos jovens matéria útil mas culta. A escola não é entretenimento e é errado que alguma pedagogia pretenda fazer das aulas programas de TV sem TV.

O facto de as formas de vida no mundo actual tenderem para a entretenização deveria levar os pedagogos a encontrarem formas mais activas de ensinar, mas não à custa dos conteúdos. A mediatização da sociedade deveria motivar ministério e professores a empenhar-se na literacia audiovisual, fornecendo ferramentas de descodificação das imagens e sons dos "media", e não na entretenização dos conteúdos e métodos. Nem o anterior nem o actual governo deram um só passo no caminho da introdução da literacia audiovisual nos curricula.

Quanto à língua, o que esperamos da escola é que ensine, e com métodos modernos, Gil Vicente, Camões, Eça, Pessoa, Vergílio Ferreira, Sophia, Agustina e tantos outros. Não só porque são bons mas porque são nossos. Se a escola não os ensinar e puser os meninos a aprender acriticamente as regras dum "reality show", como se isso fosse muito moderno, é a própria escola que contribui para a morte do que, no nosso passado, nos fez nós. É um vexame que se tirasse os Lusíadas dos manuais do 10º ano e se incluísse o regulamento do BB.

Esse "estudo" do BB contribui para legitimar um objecto da indústria do entretenimento que, segundo tantos testemunhos acessíveis aos autores do manual, nem sequer se respeita a si mesmo, como um novo livro vem reiterar. Editado já este mês de Novembro, um pequeno livro de Alexandra Laranjeira desenvolve a tese que defendi no meu também pequeno "Reality Shows, Ritos de Passagem da Sociedade do Espectáculo" (MinervaCoimbra, 2002). Defendi a tese de que uma parte dos "reality shows", muito em especial o Big Brother, se constitui como ritos de passagem semelhantes aos das sociedades ditas primitivas.

O meu texto baseou-se nas obras de Arnold Van Gennep, autor do conceito dos ritos de passagem, e de Victor Turner, que desenvolveu o conceito de liminaridade (a fase da passagem do rito passa de processo a estado). Defendi que enquanto outros ritos marcam, por exemplo, a integração dos jovens na sociedade adulta, o BB e outros "reality shows" são ritos da passagem do anonimato ao estrelato na sociedade do espectáculo.

Na sequência desse trabalho, Laranjeira publicou agora "Mediatização da Vida Privada - O Big Brother como Rito de Passagem" (ed. Autonomia 27). Eu recorri à antropologia como auxiliar dos estudos televisivos, ela situa-se numa perspectiva exclusivamente antropológica encontrando em monografias antropológicas, nomeadamente na Índia, semelhanças com o BB.

Recorreu também aos depoimentos de pessoas envolvidas no BB. Alguns deles revelam a voracidade do lucro da empresa produtora do programa, inscrevendo-a num capitalismo selvagem que deveria ser proibido por uma Alta Autoridade, se existisse, e pelas leis comuns da nação: "não existem quaisquer tipos de regras escritas sobre o concurso"; "a Endemol faz de tudo pelas audiências. Manipula expulsões, que raramente coincidem com a escolha do público, que é suposto ser quem expulsa os concorrentes de quem menos gosta." Como se vê, os incompetentes autores do manual escolar não estudaram bem a matéria.

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Passados 25 anos sobre o seu celebrado "Sobre a Fotografia", Susan Sontag regressou ao tema em "Olhando o Sofrimento dos Outros" (Gótica, 2003), um longo ensaio já recenseado no Mil Folhas por Adelino Gomes (27.09). Ela voltou ao tema porque mudou de ideias, o que é bom. Neste livro Sontag contraria a sua posição pós-modernista que escravizava o observador a uma imagem da realidade demasiado distante dessa realidade. "As imagens consomem a realidade", escrevia em 1977. "A humanidade arrasta-se sem solução na caverna de Platão, deliciando-se ainda em meras imagens da verdade". E propunha um racionamento de imagens sob o eufemismo de "ecologia das imagens". Agora valoriza a função da imagem e rejeita a sua "ecologia".

Apesar de criticar a teoria sobre a transformação do real em espectáculo, a que dá o epíteto de "especialidade francesa", pode atribuir-se a ela mesma a tendência para se esbater a realidade perante a sua imagem. Quando Sontag descreve as ideias de Guy Debord como "pura retórica" poderia estar a escrever sobre algumas das ideias suas de há 25 anos.

Julgo que não foi a evolução da fotografia nem novas teorias o que fez mudar a atitude de Sontag e de diversos outros autores. O choque epistemológico resultou do choque da realidade vista pela TV no dia 11 de Setembro de 2001.

Este ensaio é tanto sobre fotografia como sobre televisão, que referências constantes transformam num pano de fundo do texto. O 11 de Setembro e a guerra na Bósnia (a que Sontag assistiu) reforçam a nova crença na representação da realidade pela TV e pela fotografia e na sua função ética de prestar testemunho.

O eixo central do livro é a posição do observador do "sofrimento à distância", tema que, aflorado há 2500 anos por Aristóteles, interessou Adam Smith na sua "Teoria dos Sentimentos Morais" (1759), e, no século XX, Hannah Arendt e Luc Boltanski. Este autor francês escreveu uma obra importante para quem escreve sobre jornalismo televisivo ou foto-reportagem, "O Sofrimento à Distância" (1992).

A prosa um pouco negligente de Sontag não cita estes autores nem regressa aos textos de Barthes sobre a semiologia da imagem, que ela conhece bem. Na verdade, tal como aqueles autores, Barthes não precisaria de mudar de ideias após o 11 de Setembro, pois o evento confirmou as suas interpretações da imagem. Quer Barthes quer os outros autores respondem às interrogações de Sontag neste texto, o qual legitima a recolha e apresentação de imagens de sofrimento, como sucedeu no 11 de Setembro. É um tema cada vez mais presente nas obras de reflexão sobre a TV e outros "media", sendo o ensaio de Sontag um bom contributo para alargar o debate a outros públicos.