Eduardo Cintra Torres

Jornalista Entrevista Jornalista Sobre Jornalista


O ataque de bandidos armados originou uma das mais feias "campanhas" recentes do jornalismo televisivo português. A falta de organização e experiência dos jornalistas e da GNR na relação com eles foi depois patente.

Há uma prática crescente que faz notícia do mensageiro e da transmissão das mensagens e não do seu conteúdo. A realidade mediada não interessa, só a mediação. Em caso de conflitos longínquos, espera-se que o espectador tenha mais interesse no repórter que conhece do que num país que desconhece. Os livros escritos por jornalistas sobre o "eu na guerra" são em número crescente. Em Madrid, há três semanas, vi quatro. Em Londres, vi "The Wars Against Saddam", do melhor tele-repórter britânico, John Simpson (McMillan, 2003). Em Lisboa, há os novos de Carlos Fino e de Mário Rui de Carvalho, além dos vastos trabalhos de José Rodrigues dos Santos.

Uns estão mais focados nos conflitos e na reflexão sobre o jornalismo em tempo de guerra. Outros mais na experiência pessoal. Com o episódio do assalto e rapto de repórteres portugueses no Iraque vivemos uma espécie de "livro em directo" sobre a transformação do jornalista em notícia. Esse episódio mostrou a face dramática dum fenómeno cuja face fantasiosa é o casamento de Felícia com Felipe.

O ataque de bandidos armados originou uma das mais feias "campanhas" recentes do jornalismo televisivo português. A falta de organização e experiência dos jornalistas e da GNR na relação com eles foi depois patente. Parece que a Guarda e o Governo não explicaram bem que os jornalistas não ficariam sob a sua alçada. No dia seguinte, nove repórteres, usando jipes espectaculares (como que dizendo aos ali-babás "estamos aqui!"), cumpriram o habitual jornalismo português de expectativas, bem perigoso neste caso: disseram exactamente quando e como se processaria a próxima deslocação (como que dizendo aos ali-babás "vamos pela estrada tal às tantas horas"!).

Depois... aconteceu mesmo: os ali-babás também vêem televisão e cheira-lhes que aí vêem jornalistas estrangeiros. O assalto resultou em rapto e baleamento. Os leitores sabem o resto. Não sabem mesmo outra coisa, porque durante quatro dias as televisões, muito em especial a SIC, dedicaram muito mais tempo a este assalto sem consequências trágicas do que ao que vitimou 19 "carabinieri" italianos no local onde a GNR se deveria instalar; dedicaram mais tempo ao rapto de Carlos Raleiras, da TSF, do que jamais dedicaram a qualquer outro português raptado por bandidos, fosse ele desconhecido (como era Raleiras na véspera), ou conhecido (como Miguel Sousa Cintra, por exemplo). E souberam mais sobre a bala que atingiu Maria João Ruela do que jamais souberam sobre qualquer outro português baleado por bandidos.

Os noticiários (menos, mas também, os da RTP) ficaram dominados por um ataque a jornalistas por ali-babás apolíticos (apesar do apressado comunicado de Morais Sarmento atribuindo-o ao "terrorismo internacional", sabe-se lá se com o objectivo de se colar à compaixão pública pelos jornalistas). Em alguns noticiários, nomeadamente na SIC, a comunicação sobre o ataque ultrapassou a meia hora. Alguma da informação era prejudicial para as acções de recuperação de Raleiras. A informação sobre o regresso de Ruela a Portugal ultrapassou na SIC, mas também nos outros canais, tudo o que pensei ser possível jornalistas dedicaram a jornalistas. Nem Raleiras nem Ruela, ambos bons repórteres, mereciam o que as televisões lhes fizeram.

Porque se tratou, em especial no caso da SIC, de sensacionalismo e tabloidismo conscientes. Não houve informação, apenas comunicação, centrada numa pessoa conhecida devido aos seus afazeres profissionais de jornalista e nas emoções evidentes que do caso poderiam espicaçar-se no espectador.

Em quatro dias, os jornalistas falaram apenas dos jornalistas. Não fiquei a saber nada de Nassíria, dos seus habitantes, da sua economia, das suas forças de segurança, das ligações às outras cidades iraquianas da região. Não ouvi um único especialista português ou estrangeiro. Não ouvi nenhuma auscultação de iraquianos, nomeadamente das novas autoridades. Não vi nenhuma informação detalhada ou quantitativa sobre os assaltos deste tipo. Não fiquei a saber nada sobre os circuitos de venda do material roubado. Não vi a instalação dos GNR, só referenciazinhas. Nada soube sobre o contingente dos "carabinieri" italianos. Nada sobre a força militar britânica que domina a região. Nada ou quase nada sobre o apoio da população aos polícias estrangeiros. Mas fiquei a saber dezenas de coisas sobre o nervo ciático da jornalista, sobre os medicamentos que tomava pela manhã, sobre os sacos de equipamento de Raleiras, etc.

Este episódio foi do pior jornalismo que se pode prestar ao país. Foi desinformador pelo excesso de enfoque e de emoção nos assaltados. E teve uma curiosa mudança de discurso. No início da guerra do Iraque, o discurso oficioso dominante do jornalismo televisivo português condenava a colocação de jornalistas nas colunas militares americanas (enxertados, "embedded"). Esse discurso do nosso jornalismo desprezava os colegas americanos. Mas agora deu uma volta de 180 graus. Sem nunca exprimir a semelhança com os americanos enxertados nas forças invasoras, o telediscurso hegemónico condenou abertamente, ou nas perguntas às autoridades, a não integração dos jornalistas nas forças militarizadas. Depois do assalto dos ali-babás, o telejornalismo adoptou o bem português discurso do coitadinho, ou dos "cry-babies", como referia M.R. de Carvalho no bem avisado texto que ontem escreveu para o PÚBLICO. Antes, só faltou à TV portuguesa gritar "abaixo os jornalistas enxertados!"; agora só faltou gritar "mas porque não nos enxertam?"

Em 14 de Novembro, a SIC dedicou uns incríveis 3/4 do seu tempo noticioso ao caso do ataque (73,7%), e em três dias dedicou-lhe 164 dos 345 minutos de noticiários, isto é, metade (47,5%).

No mesmo fim-de-semana, o "serviço público" da RTP1 não constituiu alternativa: no sábado, depois de futebol, fez uma "Praça da Alegria Especial Estádio do Dragão", começando às 23h30 e até à uma. No dia seguinte, o Estádio do FCP ocupou mais de dez horas de emissão, incluindo 70% do Jornal da Tarde, mais de quatro horas de outro "Praça da Alegria Especial", quase três horas de directos sobre a inauguração e ainda mais duas horas com o jogo inaugural. Nunca uma terceiro-mundice dessas se tinha visto na RTP1 e nunca tal se viu em canal nenhum de serviço público de países democráticos e desenvolvidos. Anteontem, quando a Inglaterra obteve a sua histórica vitória de rugby na Austrália, a BBC, apesar de bastantes ligações em directo a Sydney e de ter resvalado para um patriotismo desajustado do seu antigo modelo informativo, manteve-se dentro dos limites da "civilização ocidental" que a RTP espezinha de cada vez que abre as goelas e os olhos para o futebol.