Eduardo Cintra Torres

Uma Estória de Encantar


Das Astúrias veio como Borralheira, às Astúrias voltará sua princesa. O príncipe pensou: ela, a Letícia da televisão, será a notícia. E, assim, o príncipe casou com a televisão, como faz o povo todo.

Era uma vez um príncipe, muito alto e muito bonito, herdeiro de grande e poderoso reino. Chamava-se Filipe e tinha 35 anos. Há muito que o rei e a rainha andavam apoquentados por estar ele em idade casadoira e não haver meio de encontrar noiva a condizer consigo e com a próspera pátria. Era tão grande o desassossego que o reino quase todo já trocava os ii com os vv e dizia "novia" em vez de noiva.

Montando fogosos cavalos de ferro, voando em belos pássaros de fogo, Filipe procurava, incansável, no reino e no mundo, uma princesa que assentasse no sapatinho do seu poder. A todas ele experimentava, mas não, não era nunca a princesa encantada.

Os anos passavam. Havia muita consumição na família real e no reino, porque os príncipes precisam de princesas para procriar no casamento, como mandam fazer a seus súbditos. O príncipe sabia, ó se sabia, que a função biológica da procriação é a mais importante de todas as de um príncipe, porque se os príncipes não tiverem filhos acabam-se os príncipes, e, por arrasto, acabam-se os reis também. Mas sabia também da maldição que recaía sobre muitas famílias reais, em que não se consegue casar, ou procriar no casamento, ou ter mais filhos que a maioria das famílias vulgares que fazem coisas vulgares, incluindo as coisas que fazem nos pobres leitos conjugais.

Certa noite, inconsolável e arreliado, recolheu Filipe a seus aposentos logo depois da ceia sem mesmo dar aos que àquela hora servem ainda um príncipe herdeiro as boas noites (e ele, a dá-las, diria "buenas noches").

Depois de preparar uma antiga poção mágica escocesa contra o enfado (poção com 12 anos de idade que ele misturou com água borbulhante e duas pedras de gelo) sentou-se Filipe num sofá confortável - mais que um trono -, e pegou numa arma terrível que se espalhara muitos anos antes por todas as casas dos súbditos do reino. Um telecomando.

Enquanto bebericava, pôs-se o príncipe a praticar distraidamente o desporto favorito de seus súbditos, "el zapping". A poção mágica produzia um suave efeito conciliador nas suas emoções desencontradas, mas não tanto que o fizesse esquecer o grave problema que sobre a sua coroável cabeça pendia.

Saltitando de canal em canal, o príncipe dava por si a pensar quão pobres eram os cidadãos do seu país e os do mundo todo para entregarem tanto tempo a tamanha sensaboria. "Pobrecitos, pensava, não têm dinheiro para não verem televisão." E, ali no palácio dourado, magoava-o pensar que os seus concidadãos eram pobres.

A poção escocesa adocicava-lhe o corpo, enquanto o polegar carregava sem cessar na tecla mais do telecomando, fazendo do ecrã uma luz intermitente, tremeluzindo como os néons das cidades proibidas que o príncipe visitava longe dos jornalistas das revistas do coração, por não serem aquelas visitas do coração.

O som dos canais chegava aos solavancos por causa de "el zapping". De um canal vinha a palavra "pues", de outro "esta", de outro "noche", de outro "hay", de outro "que resolver", de outro "un problemazo". No seu cérebro adormecido, se tal se pode dizer de um príncipe, pensava ele se seria a poção mágica ou a televisão que lhe dizia "pues esta noche hay que resolver un problemazo".

Tecla mais, mais, mais... Sempre os canais mudando, sempre a luz intermitente... o príncipe sentia-se agora bem. Olhando o ecrã sem o ver claramente visto, como que encantado pela luz, balbuciava para o televisor uma lengalenga de infância com que a rainha sua mãe o embalava: "Espelho meu, espelho assim, haverá no reino alguma princesa p'ra mim?" 1.

E, num repente, um tão de repente como nas outras estórias de príncipes, o príncipe viu no ecrã a sua princesa, como se a tivesse visto sempre, como se ela fosse ele e ele ela, os dois atraídos por aquela luz, unidos pela pele do ecrã, ele olhando-a embevecido como qualquer súbdito a olharia, ela do lado de lá olhando como se fosse só para ele. Era ela - e, ó alegria!, felizmente era no canal oficial do Reino!

O príncipe olhou a futura princesa, prendada na profissão de apresentadora de televisão, bonita, inteligente e com a grande mercê de já conhecer as coisas da vida, pois felizmente era divorciada. O príncipe percebeu que uma rainha é uma apresentadora da monarquia. Fulminado, escolheu-a. Ela era mais conhecida do povo que as filhas de condes e duques e mais intimamente amada que as das capas das revistas, pois ela era toda audiovisual, toda som e imagem em movimento, palavra e gesto.

Letizia de seu nome, nome latino significando jóia e bom augúrio, nome de deusa da abundância e da fertilidade, e não Letícia, por erro ou oráculo inconsciente dum funcionário do registo civil das Astúrias, ela, Letizia, assentava no sapatinho do poder. Das Astúrias veio como Borralheira, às Astúrias voltará sua princesa. O príncipe pensou: ela, a Letícia da televisão, será a notícia. E, assim, o príncipe casou com a televisão, como faz o povo todo.

Amaram-se, ele, que já a conhecia da televisão, ela, que já o conhecia da televisão. Encontrarem-se foi reverem-se. Juntarem-se os dois foi passarem da montagem em planos contíguos, ao mesmo plano televisivo e, quiçá?, quiçá?, a quartos contíguos. Ele, que era príncipe, rei será. E ela antes de ser rainha já o era da televisão. O povo aprovou. Foram felizes para todo o sempre, sendo este sempre o momento em que se conta a estória, pois nunca digas desta Diana não beberei.

Entretanto, num pequeno país ao lado, o povo vivia sem estórias de príncipes nem princesas e oprimido por políticas comunicacionais do Governo e do presidente a fazer lembrar a da bruxa má. Nesse pequeno e pobre país as apresentadoras de televisão não tinham as mesmas hipóteses de sonhar das Letizias do reino ao lado. Não podiam, como Letizia, sonhar com El Gordo, porque El Gordo não havia, só a Taluda. E, assim, o máximo que conseguiam era uma ligação com um presidente dum clube de futebol ou um casamento com um autarca comentador da bola ou com um ministro da Cultura depois comentador. Coisas de repúblicas.

Nesse pequeno país, vivia-se por empréstimo, quem sabe se a crédito, a estória encantada do príncipe do reino vizinho. Aprovava-se a escolha de Filipe e augurava-se-lhe um grande e feliz reinado. Desde que ele não tentasse ser Filipe IV de Portugal.