Eduardo
Cintra Torres
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A Ameaça ao País dos Coitadinhos |
Os objectivos da Operação Triunfo (RTP1) e Ídolos (SIC) não são promover a música ou encontrar novos talentos mas a obtenção da maior audiência e das maiores receitas para os produtores e operadores que os exibem. Se de lá saírem novas estrelas "pop", tanto melhor: mais receitas. Na Grã-Bretanha e EUA os vencedores tiveram êxitos de vendas extraordinários. O mesmo com a Operação Triunfo (OT) em Espanha. Não é por acaso que os criadores do formato Ídolos são industriais de estrelas musicais: um é produtor, o outro gerente das Spice Girls. E a OT vem da Endemol, uma fábrica de dinheiro. Está fora de questão promover-se a criatividade musical (escrita de canções, música e letra) e bons músicos. Só "ídolos pop". OT e Ídolos não cumprem função social para lá do entretenimento. É pena, dado o nosso tremendo défice de música popular... popular. Quase não temos criadores de canções. O património colectivo de canções populares é ínfimo (Povo que Lavas no Rio...). A escolha de repertório por concorrentes ou produtoras é difícil, saem sempre as mesmas nove canções, tudo o resto é em inglês. Sem repertório comum, complica-se a ligação dos espectadores aos concursos. Os concorrentes e muitos vocalistas pop portugueses são displicentes com as letras. Não sabem interpretá-las (muito menos em inglês), são karaokistas para grande audiência. Junte-se à superficialidade interpretativa a natural insegurança e obtém-se um quadro aflitivo. Muitos concorrentes fazem do canto prova de atletismo, debitando decibéis e desfazendo-se em diarreia de melismas (efeito de cantar muitas notas onde na partitura há apenas uma). Para não deixar o negócio nas mãos dos concorrentes, os produtores descentraram Ídolos e OT da sua matéria: a música. Primeiro, transformaram simples concursos de vocalistas em maratonas intermináveis de vários meses. Segundo, criaram manobras de diversão: conversas privadas dos concorrentes, intermináveis "galas" com emoções de plástico, votação pública, "escola", "professores", prestação de júri e apresentadores. Terceiro, adoptaram manobras afectivas para embrulhar o produto. No caso da OT, o embrulho afectivo é o dos coitadinhos. Somos um país de coitadinhos, eternas vítimas inocentes. Vejam lá o que me aconteceu... Eu só quero ser estrela... Ai, coitadinho... Eu que não tenho culpa... Eu só queria uma casinha... Ai, coitadinho... A estratégia do coitadinho, muito no diminutivo, ocorre em muitos programas e visa fomentar uma das fortes emoções positivas que se vivem à distância, a compaixão (tema de Luc Boltanski, "La Souffrance à Distance", 1993). A OT assume a coitadinhice no seu máximo esplendor. Ali quem não chora não é boa gente. Concorrentes e apresentadora estão sempre em contacto físico: beijinhos, mãos nos regaços, abraços, festinhas na cabeça, toques, pancadinhas nos ombrinhos. Os concorrentes ou assumem esta postura afectiva ou arriscam a eliminação, cantem bem ou cantem mal. É também um concurso de personalidade postiça. O Ídolos assume a estratégia afectiva contrária: a humilhação que provoca riso. Dois jurados falavam à bruta com os candidatos maus (a maior parte), um terceiro refreou-se e a jurada foi mais branda, como se estivesse mais consciente das câmaras. Pela primeira vez um júri parecia dizer o que realmente pensava como se as câmaras de TV não estivessem presentes (estética de "reality show"). Frases soaram brutais a concorrentes e espectadores. A "directora" da "escola" da OT, a vocalista Maria João, disse-se horrorizada com o júri do Ídolos. Por mais genuína que fosse a pose do júri — que é ser genuíno quando há câmaras na sala? —, ela foi tão construída quanto a melosa atitude dos "adultos" juizes da OT. A humilhação de concorrentes pelo júri faz parte do formato Ídolos, da construção de identidade do programa. Em vez de verem os concorrentes pelo lado dos coitadinhos, os espectadores vêem-nos pelo lado da humilhação, do prazer de ver sofrer, o "schadenfreude" que Schopenhauer condenava. No entretenimento este "schadenfreude" com humilhação pública é aceite porque o Ídolos é também um rito de passagem para quem quer vencer na indústria da fama. A novidade do júri "não-hipócrita" surpreendeu espectadores. E outros júris surgiram como "hipócritas" por dizerem "sempre bem", mesmo dos concorrentes maus. Como os júris, os espectadores sabem que a maior parte dos concorrentes nunca terá um lugar ao sol no competitivo universo industrial pop. Nesse sentido, soa de facto hipócrita ouvir jurados dizerem "ainda tens um caminho a percorrer" e frases do género. Chega-se ao ridículo, como na OT, de se dizerem maravilhas das qualidades interpretativas dos concorrentes no momento em que chumbam; Maria João faz discursos patéticos antes de despachar para casa os piores concorrentes. Também Catarina Furtado assume o papel insuportável de mãezinha dos coitadinhos. A novidade da atitude do júri de Ídolos não é o seu único trunfo na concorrência à OT. Os apresentadores, Sílvia Alberto e Pedro Granger, surpreenderam não só na prestação individual como em par. Ela confirmou qualidades que revelara num concurso da RTP para jovens: à-vontade, diálogo fácil, expressão facial e sentido de humor. E Granger está melhor aqui do que em papéis melodramáticos. A prestação dos apresentadores tornou-se atracção em si pelas qualidades do par, graça juvenil dos textos e dinâmica visual. Mais interessante que os intérpretes. Como na OT, júri e apresentadores compensam o "déjà vu" do género e a falta de qualidade musical. No Ídolos, os apresentadores também compensaram com afectos a dureza do júri, confortando os coitadinhos. O comportamento do júri provocou um choque cultural, mais do que de boas-maneiras. O concurso vem da Grã-Bretanha e tem tido maior implantação em países anglo-saxónicos ou com forte presença da ética protestante. Nos EUA, obteve das maiores audiências de sempre. Seguem-se Alemanha, Holanda e França. A seguir à Polónia, Portugal é o segundo país de maioria católica onde se produz. A concorrência entre OT e Ídolos revela a diferença entre duas culturas ou "personalidades de base", para citar o antropólogo Abraham Kardiner, referindo-se ao "conjunto dos instrumentos de adaptação que um indivíduo partilha com todos os outros de uma dada sociedade": na OT a personalidade de base do país dos coitadinhos, no Ídolos a importada personalidade de base da ética capitalista protestante. Através da globalização dos formatos, a TV traz novos modos de vida. Os resultados de audiências destes concursos mostram qual a personalidade modal com mais adeptos. |