Eduardo
Cintra Torres
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RTP, Um Ano Depois |
Em várias áreas, a administração fez um trabalho notável, tendo em conta a pesada herança deixada pelas anteriores: descalabro financeiro, desgoverno, gente a mais (dezenas de anos de cunhas para "boys", "girls" & "monsters"), descrédito, inexistência de orientações claras da tutela e de regras, irracionalidade na produção, desorganização, falta de sentido de serviço público na gestão e na programação. A "solução" proposta para a RTP pelo governo anterior, e também por Carrilho já depois das eleições, era injectar-lhe mais e mais dinheiro, mais dinheiro para uma insanidade administrativa e de conteúdos. Balanço da actual gestão: saneamento financeiro; renegociação da dívida; transparência e racionalização na produção de programas; redução do pessoal (há menos 800 funcionários e não se nota!); venda da TV Guia, de participação na Sport TV e fim da RTC; mudança de instalações; racionalização do conjunto de empresas do grupo; ligação racional com a RDP; refundação da empresa RTP em moldes sérios e modernos. Fez-se também o fecho de dossiers deixados em aberto pelas gestões anteriores (exemplo: acordos com a PT). Em resumo: clarificação e saneamento duma empresa financiada pelos contribuintes, com poupança de milhões dos seus euros. Não é demais frisar a tarefa, pois deveria ser sempre uma prioridade dos políticos e gestores da coisa pública. Mas há uma questão fulcral que não tem tido a mesma atenção: os programas. Esta questão é fulcral porque a RTP existe para fazer programas e apenas isso. De serviço público. Porque a RTP fornece um serviço (programas!) que é mais utilizado diariamente do que quase todos os outros serviços públicos do país. A programação da RTP é, juntamente com a electricidade e a água, um serviço público com que contactam diariamente 6,4 milhões de cidadãos: razão acrescida para que a RTP tome a máxima atenção ao seu único serviço (programas!). Daí que, a par da poupança do nosso dinheiro, seja necessário o máximo empenho na criação de programas de serviço público. A nova RTP ainda não agarrou esta tarefa, tão fulcral que é quase a única. Basta olhar para o ecrã. Grande parte da programação da RTP1 não se pode caracterizar como de serviço público, mesmo que não ofenda os mais ortodoxos. E uma boa parte da que se enquadra nos parâmetros de serviço público é sofrível, quando não má. Com raras excepções, os programas principais da RTP1 poderiam ser realizados por canais privados. O actual núcleo duro de programas já vinha de trás; e dos programas já feitos sob a orientação da nova gestão poucos se aproximam dos princípios de serviço público de que o governo e a RTP se disseram promotores. Preço Certo em Euros, Bom Dia Portugal, Operação Triunfo, Quem Quer Ser Milionário, Santos da Casa, Portugal no Coração, Passo a Palavra, Lusitana Paixão, o Tonecas... Razão teve Manuel Ferreira Leite quando afirmou: "Há muitos serviços que não faz sentido serem prestados pelo Estado" (PÚBLICO, 21.09). A ministra das Finanças poderia estar a referir-se a uma boa parte da programação da RTP. A necessária contenção levou à compreensível ponderação de todos os custos relacionados com a programação, onde havia formas de trabalhar incríveis (exemplo: eram os produtores externos quem concebia os conteúdos, o que levava à distorção de filosofia, conceitos, realização e resultados dos programas; a RTP não acompanhava a produção dos programas externos). A contenção de custos - não há dinheiro!, não há dinheiro! - tem tornado difícil pensar em produzir programação de qualidade e é em parte responsável pela mediocridade do que se vê em antena. Embora se compreenda que o estado em que estava a RTP obriga a refundá-la e aos processos de trabalho, a tutela e a empresa não podem ignorar que o espectador de hoje não tem de esperar resultados nas calendas. Neste campo, desanima saber que quase não há bons programas em produção e que alguns já em exibição podiam passar na TVI. Além disso, o facto de o Governo ter mantido o financiamento parcial da RTP com publicidade conduz inevitavelmente à "comercialização" da programação e à "toxicodependência" das chefias face aos "shares" e à concorrência com os outros generalistas, privados. As declarações públicas de responsáveis da RTP não enganam: só falam em "shares", não falam em programas. A paralisia existente também resulta de a gestão ainda não ter chegado ao fim dos trabalhos. De facto, a administração ainda não deu cabo - e já era tempo - dos processos burocráticos kafkianos paralisantes das decisões. Metade das pessoas continuam a gastar o mesmo papel e o mesmo tempo: como se o anti-herói de Kafka se perdesse nos mesmos processos absurdos, nos mesmos gabinetes... agora vazios. Muitas das decisões relativas à alteração da RTP têm passado por uma consultora externa, uma dessas empresas que, por ser de fora, vê melhor muitos dos problemas, mas que, por não ter a sensibilidade da actividade sobre a qual age, acaba por encalhar nalgumas das suas propostas. Quanto à RTP2, a lentidão também manda, desde logo porque foi preciso alterar a lei da TV. As cedências feitas à última hora no parlamento levaram a uma certa descaracterização da proposta do governo. Entretanto, o tempo passa, a RTP2 continua a prestar serviço público 24 horas do dia... e no ecrã (só ele conta) está tudo na mesma. O projecto de programação continua por estabilizar, a articulação com a RTP não está feita e a tal empresa de consultoria vai participando em decisões concretas do projecto e muda planos ao sabor dos ventos. Contactando alguns possíveis parceiros da sociedade civil, verifiquei que o projecto foi-lhes mal explicado, está atrasado e pouco explorado. Não houve empenho em criar as melhores soluções de parceria. Houve mesmo alguma displicência. A ligação à sociedade civil, que o governo pretendia que fosse estruturante na reformulação do canal, não teve o empenho que merecia, dado que era estruturadora da filosofia do projecto. Prevejo que a ligação à sociedade civil seja curta e empurrada para um gueto que não contribua para a caracterização diferente do canal. Começará a Dois por ser apenas a velha RTP2 com um "facelift"? Veremos. Para já, certo é que em termos do único serviço que a RTP tem de prestar aos cidadãos - programas!, programas! - as diferenças com o passado são muito menores do que nas outras áreas da vida da empresa. Dezoito meses depois, continuamos a ver uma RTP1 comercial e pensando em primeiro lugar no "share" (na concorrência com os privados) e uma RTP2 envelhecida e abandonada. |