Eduardo Cintra Torres

O Nascimento de Um Crítico


José Pacheco Pereira tem agora de enfrentar uma contradição: ele, um dos que mais critica os "media", é também um dos que mais aparece em blogues, jornais, rádio e TV; ele, o persistente crítico dos "media" e do seu negro universo de manipulação, é um dos maiores beneficiários dos "media" - agora em horário nobre

Há 30 anos exactos, em 17 de Outubro de 1973, comprei um dos primeiros livros de José Pacheco Pereira (JPP), "Questões Sobre o Movimento Operário Português e a Revolução Russa". Inscrevia-se num movimento de pesquisa pondo em causa a ortodoxia oficial do PCP e o seu monopólio do passado operário, baseado na ausência de historiografia. César Oliveira, Pacheco Pereira e Carlos da Fonseca não precisavam de muito mais do que prefaciar antologias de textos.

Nesse livro de 71 já se encontra o estilo do JPP actual: para ele, as questões em estudo "são extremamente complexas", não há "um processo único, mas sim um feixe de questões" dum movimento "complexo", sendo necessário "afastar a evidência empírica".(1) O autor coloca-se contra a ignorância e o lugar-comum, que asfixiam a opinião pública e simplificam o que é complexo.

Ei-lo, então, 30 anos mais tarde, combatendo na TV análises simplistas prevalecentes e aceites sem discussão nos "media". No passado contra a dominação ideológica do PCP mas admirando a sua tenacidade, está hoje contra a ideologia dominante dos "media" mas admira a sua eficácia.

O último ano indica que a passagem de JPP pela política activa deve estar a acabar. Como deputado europeu, sobrou-lhe tempo para escrever livros, como a sua notável biografia política de Cunhal, manter um arquivo, ter programa de rádio, coluna no PÚBLICO, participar em conferências, manter um blog, etc. O mundo intelectual, com mais resultados que a política, tornou-se-lhe auto-suficiente. Consolidou a posição de autor e comentador; afastou-se da política partidária, onde o intelectual combativo, inteligente e culto, com ideias para além da carreira pessoal, é geralmente mal recebido. Entre ser criticado e ser crítico, JPP escolheu a segunda profissão. Poderá ter mais impacto.

Temo que a saída de JPP da política se relacione também com o seu desprezo pelas "massas", que nele luta dialecticamente com a crença profunda na democracia. Será por isso que já não quer apresentar-se a sufrágio? Para ele, uma política de qualidade é incompatível com "as massas", essas maçadoras que só gostam de populistas. Aproxima-se nisto de muitos intelectuais desde o século XIX. As "massas" são horríveis, em especial se desenquadradas por partidos.

Esta eterna contradição entre democracia como melhor regime e horror de serem as massas ignaras a eleger os dirigentes leva JPP a optar pela posição do educador, do catequista com toque de sobranceria e desconfiança no escrutínio da política por cidadãos sem currículo académico. JPP assume por isso uma entoação discursiva que nos leva a crer que ele é que sabe (oh!, há tanto tempo), ele detém uma verdade escondida que tenta passar ao mundo. É certo que revelar outra luz é tarefa do crítico ou do comentador, mas JPP, por ter pouco espírito de humor, tem uma retórica de iluminado. Na SIC, optou por tentar educar "as massas" com pastilhas de cultura e assim conquistá-las, não pelo voto, mas pelo "share".

Há duas semanas, Santana Lopes deu uma ferroada ao JPP deputado europeu, revelando uma diferença entre os dois: JPP ainda é político mas isso não move a sua actividade de comentarista; Santana é político, o comentário visa a busca de mais glória pessoal. Santana comenta na SIC a sua própria carreira, na Câmara e como putativo presidenciável, numa terrível promiscuidade de actividades, uma fraude ao consumidor que, se houvesse Alta Autoridade, a SIC seria obrigada a reformular. O mesmo sucede com Carrilho, também ele comentando para crescer no PS.

JPP, como Marcelo, apresenta-se como comentador de facto, com um discurso e uma atitude que visam o enriquecimento dos espectadores e não o enriquecimento da posição política pessoal. Essa proximidade estrutural entre Marcelo e JPP levou a SIC a colocar JPP à mesma hora de Marcelo, dado que o objectivo da SIC não é a ilustração do povo mas mais "share". JPP invocou modéstia para dizer que não quer, nem pode combater Marcelo. Falsa modéstia: poderia ter recusado o confronto.

A prestação de JPP tem mais de 20 minutos, duração impensável nos noticiários europeus que ele tanto glorifica nos seus artigos. Ao contrário dos comentadores da TVI e dos outros da SIC, ele tem no estúdio um espaço próprio, propiciando a respiração do comentário. Clara de Sousa levanta-se do trono de apresentador e desloca-se para o espaço dele, fazendo-lhe perguntas suaves.

Tal como Marcelo na primeira fase, usa imagens ou reportagens no meio do comentário, aqui de forma mais activa e intervindo com um PC gráfico. Todavia, tal como com Marcelo, as imagens pouco favorecem a análise, só ajudam a recordar o evento comentado. São, por isso, empecilho à crítica, que é o que o espectador pretende. Neste detalhe JPP soçobrou para já aos efeitos perversos da imagem televisiva que tanto critica.

JPP tem agora de enfrentar uma contradição: ele, um dos que mais critica os "media", é também um dos que mais aparece em blogues, jornais, rádio e TV; ele, o persistente crítico dos "media" e do seu negro universo de manipulação, é um dos maiores beneficiários dos "media" - agora em horário nobre; ele, o crítico dos "mass media" no seu facilitismo (oralidade, presença pessoal, discurso fácil), é num deles que agora se expõe à crítica de si mesmo nesses aspectos singulares do audiovisual.

A sua necessidade de se exprimir sem cessar, mais próxima do pregador do que do crítico, revela-se no seu blogue Abrupto, que é em boa parte um veículo de erudição petulante, isto é, sem justificação razoável. Ele sente a urgência de partilhar com outros a sua verdade e a sua erudição. Optou por ser uma voz oracular do cânone democrático e cultural. Mas optou, eu diria que em definitivo, por ser um verdadeiro crítico, um verdadeiro comentador. E isso é muito bom. Apesar de já quase ficar desajustado num Jornal da SIC crescentemente facilitista, é bom que ele tenha condescendido em ligar-se de perto a um - para ele - sempre criticado meio de massas horroroso, a TV, para o usar num sentido inverso ao que critica.

A referência à sonda espacial ou a homenagem a Maria Helena Rocha Pereira por ocasião da sua tradução das "Odes" de Píndaro não são momentos de pedanteria, mas um estilhaçar útil do lugar-comum e tinham justificação. A homenagem à professora que vive com os clássicos foi muito justa, bonita e genuína e, se não fora JPP, quem a faria na TV portuguesa? Os espectadores só têm a ganhar com a nova profissão integralmente assumida por JPP, a de crítico. JPP tornou-se um crítico, no sentido mais nobre e científico da palavra. Se, ainda por cima, é na crítica que se sente bem, melhor para ele e para os seus espectadores, ouvintes e leitores.

(1) José Pacheco Pereira, Questões sobre o Movimento Operário Português e a Revolução Russa de 1917, edição do uuro,, Porto, 1971, p.7.