Eduardo
Cintra Torres
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Uma Lágrima Privada |
Analiso hoje outro noticiário ao acaso, o Jornal da Noite (JN) da SIC de segunda, 15.09. Dura 85 minutos com o intervalo de 10. Constitui-se de 40 itens, dos quais só 29 são notícias (72,5%) e se referem a apenas 20 eventos, dado que nove tratam de dois fogos e cinco de três temas escolares. Incêndios, regresso às aulas e pedofilia somam 21 itens (72,5% do total das notícias). Quatro incêndios ocupam 45% do tempo total, as aulas 17% e a pedofilia 10%. Das restantes oito notícias, seis referem-se a mortes ou acidentes. Sobram Sampaio na Turquia e o início de obras do túnel nas Amoreiras. O mundo tem duas notícias, ambas com mortos (Suécia e Ingúchia). Nove itens são promoções e auto-promoções de notícias. Há seis directos, cinco a dois fogos, um ao ano escolar. Neste, a jornalista confundiu por completo escolas encerradas, escolas que não abriram, professores colocados e menos crianças. O JN recorre 11 vezes ao "microfone de rua", sendo o uso justificado em 10 casos. As promoções usam música. Há 13 itens de ou com referência à própria SIC, um terço do total: promoções, duas referências a «exclusivos SIC», referência a jornalistas-bombeiros e notícia sobre criança que poderá no futuro "mostrar aos amigos a gravação deste Jornal da Noite". Há três referências visuais, textuais ou promocionais de Santana Lopes. O JN termina com um grande ecrã com a sua foto, promovendo a sua participação no JN do dia seguinte. A "notícia" sobre o túnel faz ao autarca propaganda directa e sem factos: "Santana Lopes não vai ter de se preocupar com qualquer tipo de constestação". O JN conjuga bem imagens e textos. Daí que estes usem pronomes demonstrativos (este, esta) para indicar o que se vê no écrã. Um dos casos ("a visão é esta") não resulta porque a imagem não é ela mesma demonstrativa. Os pronomes indefinidos "tudo", "todos", "pouco ou nada" e ainda "relativamente" e "quase" substituem factos inexistentes, servem de muleta de hipóteses inventadas ("salvamento quase impossível") e para impressionar. Usa-se duas vezes o enfático verbo "garantir" em vez de "dizer" (a "escola garantiu aos pais que..."). O verbo ir surge uma dezena de vezes como auxiliar do futuro. Exemplo: em vez de "dirão o que pensam", afirma-se "vão poder dizer tudo o que pensam". Três textos antropomorfizam o fogo: o "gigante de fogo acordou", "maldoso", "tão sorrateiro e tão malandro", abeira-se "manhosamente", "parece implicar", "tem a cara de uma criatura desalmada, sem piedade"; as chamas, com "falta de piedade", estão "apenas interessadas em pegar fogo às casas", "como se soubessem". Na singela posse em Torres Vedras do juiz Rui Teixeira (sempre ele), transforma-se câmaras de TV em pessoas: é "estranho" que "todos" ("funcionários, amigos, jornalistas") pudessem entrar, "só as câmaras tiveram de ficar de fora." O novo grafismo do écrã é cheio como o da TVI, mas o uso da parede de fundo, com frases na vertical (provocando difícil leitura, acrescentada pela omissão de palavras, como em "início [do] ano escolar"), diminui o efeito de enchimento. Há imprecisões linguísticas destinadas a aumentar o drama ou intensidade das notícias: "A reportagem da SIC foi apanhada dentro de uma casa" - e vê-se a repórter fora da casa e sem receio do fogo. Um título refere "reacendimentos em áreas ainda não ardidas", isto é, áreas onde por definição não há reacendimentos. Há "estranhos reacendimentos" que não se prova serem estranhos. Um título diz "Chamas cercam Cadaval", mas não se mostra o Cadaval cercado e, pelo contrário, "80% deste fogo está controlado" e um bombeiro afirma "não há povoações em perigo". Lê-se que há seis bombeiros feridos, o título refere quatro. Os comentários do apresentador Rodrigo G. de Carvalho visam acentuar emoções ("este país que pensava que mais fogos só para o ano"), são inúteis, imprecisos e opinativos sobre factos não provados. Exemplo: diz que os bombeiros não têm "a mínima dúvida de que se trata de fogo posto", o que não era afirmado pelos mesmos. É dele a frase de mau gosto sobre a morte de Vítor Damas: compara a função de guarda-redes com o cancro, "doença sem defesa". O JN não identifica as imagens de arquivo usadas, incluindo as dos directos dos fogos, que mantêm a menção "directo" sobre imagens diferidas. A eficácia visual do JN esconde a pobreza do conteúdo, acima quantificada. A estrutura do JN revela-se submetida ao dramatismo e às intenções comerciais, não jornalísticas, do noticiário. O JN abre com uma falsa notícia, com a promoção de uma notícia "para ver daqui a pouco": um GNR salvou "uma idosa de 91 anos do meio das chamas". Esse drama será promovido mais cinco vezes, ocupa sete dos 40 itens do noticiário (17,5%). Um grande plano dum pedaço da cara do GNR mostra gotículas de suor, uma borbulha vermelha na aba do nariz, uma borbulha branca na cana do nariz, inúmeros pontos pretos na mesma aba e pelos que despontam na ponta do nariz do soldado. Outro grande plano mostra as fibras do algodão da gaze dum curativo na mão. Esta notícia promovida a partir das 20h00 só foi mostrada às 21h17, isto é, 77 minutos depois. Outras duas auto-promoções fazem a estetização dos fogos e da sua cobertura pelos repórteres da estação, que são heroicizados: "E a equipa da SIC até [?] acabou por largar a câmara, direccionou para o fogo os faróis do automóvel [para iluminar as chamas?] e pegou em baldes - só que para registar essas imagens não havia ninguém." A estrutura comercial do JN leva ao retomar de temas já tratados: incêndios de Montejunto e Monchique regressam em novos directos às 20h57, sem novidades, com o único objectivo de captar espectadores que acabam de chegar a casa. Para dramatizar, vêem-se três vezes as mesmas imagens dum bombeiro no chão com a referência "imagens não editadas". Em resumo, este JN tem um grafismo competente e boa relação texto-imagem, mas tem poucas notícias, estrutura-se para servir fins comerciais, dramatiza os materiais, apresenta erros e incorrecções, repete imagens e temas, auto promove-se incessantemente e glorifica o seu jornalismo e um colaborador da casa. É anedótico que Rodrigo G. de Carvalho diga "Todos os dias no Jornal da Noite, o país e o mundo", quando do país as notícias são poucas e do mundo mostram-se dois crimes e um fait-divers vistoso (queda de avião em festival aéreo). Quando ao fim de 1h20m os espectadores já viram sete vezes o GNR que salvou a "idosa de 91 anos", o texto no tapete rolante do ecrã afirma que a velhinha é "uma senhora de 80 anos". Esta terceira e última lágrima de espectador dá para rir e para chorar. |