Eduardo Cintra Torres

Saldos de Verão


David Kelly morreu por causa de uma palavra que não proferiu: "apimentar" ("sex up"). Isto sucedeu num país em que o jornalismo é cuidadoso e os jornalistas guardam os seus blocos de notas, que são provas testemunhais. Imagine-se que em Portugal as pessoas eram tão susceptíveis como Kelly: havia suicídios em massa!

Mar de mortos: depois do mar de chamas, a TV precisava de mais sangue e morte. Os franceses proporcionaram tragédia com a "descoberta" de que no Verão se morre de calor. A culpa não é do calor, mas do Governo: pois se até o genial Chirac o disse! No PÚBLICO, Eduardo Dâmaso (22/08) comparou a vaga de mortos ao 11 de Setembro. Há centenas de milhares de anos que o calor nos mata, mas a televisão disse-o como se este Verão fosse o primeiro. Foi patente a alegria e o alívio dos telejornais - e de alguma imprensa - quando se encontraram 1310 mortos em Portugal. Ou seriam menos? O Jornal da Noite nem queria acreditar que pudessem ser menos. As estatísticas históricas desta causa de mortalidade não interessam nada. Nos telejornais, o que interessava era poder dizer que, sim, nós também somos um país desenvolvido como a França! Nós também morremos!

Telejornais de "reprise": o Jornal da Noite voltou às trevas dos noticiários em concorrência noite fora. Enquanto o Telejornal tende a estabilizar em uma hora, que já é demais, o Jornal da Noite voltou à hora e meia e o Jornal Nacional chega às incríveis duas horas. As poucas notícias são esticadas - e repetidas, e repetidas no mesmo noticiário. Já ao nível da fraude, pelo menos no Jornal Nacional da TVI, repetem-se "reportagens" apresentadas há meses mas como se fosse a primeira vez. É incompreensível que jornalistas como Henrique Garcia e Mário Moura participem neste embuste.

As boas sessões de "reprise": o Verão traz à superfície dos canais generalistas as suas piores características, mas também traz de volta alguma da melhor televisão do mundo de anos recentes e décadas passadas.

A SIC Radical apresenta duas das mais divertidas e inovadoras séries cómicas britânicas, Liga de Cavalheiros e Royle Family. A SIC Mulher apresenta as fabulosas Absolutamente Fabulosas e as americanas Murphy Brown e Modelo e Detective (Moonlighting). A SIC generalista repete O Sexo e a Cidade (Sex and the City), uma série sobrevalorizada mas com algum interesse. A SIC Gold recua no tempo e apresenta Quem Sai Aos Seus (Family Ties), Fama e ainda Dallas, esse clássico do melodrama "kitsch", da história da TV - e da investigação sobre a variedade da recepção dos conteúdos pelos espectadores.

Os canais da SIC foram buscar todas estas séries cómicas que a RTP passou e em que perdeu o interesse. A RTP1 ficou-se pelo divertido Benny Hill, o que parece encaixar-se na programação que ali se entende para o "grande público".

As séries estrangeiras nos canais SIC contrastam terrivelmente com as repetições de séries portuguesas na RTP1, SIC e TVI: uma tristeza. Em 50 anos, a televisão portuguesa ainda não conseguiu criar programas cómicos clássicos, ou de culto, à excepção de O Tal Canal e de outros programas de Herman José na RTP. Quanto a séries, o deserto português é infinito.

Reconstrução: o poder das palavras pode ser brutal. David Kelly morreu por causa de uma palavra que não proferiu: "apimentar" ("sex up"). Isto sucedeu num país em que o jornalismo é cuidadoso e os jornalistas guardam os seus blocos de notas, que são provas testemunhais. Imagine-se que em Portugal as pessoas eram tão susceptíveis como Kelly: havia suicídios em massa!

O inquérito dirigido por Lord Hutton à morte de Kelly originou na Sky News uma "reconstrução" diária dos interrogatórios às testemunhas no inquérito com actores em estúdio. O canal ultrapassa assim a proibição de câmaras e gravadores no Royal Court. Os actores re-apresentam, ou representam, os diálogos do dia com as mesmas palavras e as mesmas entoações dos intervenientes na sala de audiências.

A reconstituição integral dos diálogos tem de falso não serem aqueles os intervenientes nem ser aquele o local onde decorre o inquérito; a entoação pode assemelhar-se, mas não é a voz verdadeira. Todavia, ficamos bem perto do real, certamente mais do que num trabalho jornalístico. Ao mesmo tempo, a reconstrução não prescinde da interpretação jornalística das sessões do inquérito.

Mar de livros: o figurino do NTV mudou bastante. Como pior era impossível, há melhorias sensíveis à espera da futura análise do Olho Vivo. Hoje saúdo o regresso de Francisco José Viegas aos programas televisivos com Livro Aberto.

O programa foi promovido por um "spot" em que Viegas faz um discurso lírico sobre "O" livro, elevando-o ao mito: "Ele" deve ser lido, bebido, devorado, "letra a letra, palavra a palavra"... É um tipo de discurso paternalista - e contraproducente -, habitual na nossa "cóltura", sacralizando o livro em abstracto.

O livro é uma realidade imensa que inclui os de consulta, os técnicos, os de mastigar e deitar fora, os de ler aos bocadinhos, os livros-só-lombada, os para folhear, os realmente sagrados e os milhões de livros horríveis. Neste mar de livros, poucos se lêem como Viegas liricamente descreveu. Há anos, aconteceu-me vaguear pela estante à procura de um livro qualquer, só para ler umas páginas sem grande empenho (o que não diria Viegas!). Peguei na "Vida de Samuel Johnson", de Samuel Boswell, e abri ao calhas. Numa coincidência rara, saiu-me uma página em que o sentencioso Dr. Johnson diz que não é preciso ler um livro letra a letra, palavra a palavra, se apetecer deve-se antes abri-lo ao calhas e ler umas páginas...

A autopromoção do Livro Aberto aborrece ainda mais porque Francisco José Viegas e o programa não têm nada a ver com o que ele lá diz. Viegas trata a TV e os livros por tu. Como apresentador, é encantador e simpático com convidados e espectadores. Não tem nada o ar de quem lê todos os livros "letra a letra, palavra a palavra". Sendo ainda autor e apreciador de livros, reúne as condições certas para um programa destes. Os anos em que esteve afastado do ecrã foram um desperdício dum país pobre com uma TV pobre.

Livro Aberto é muito simples, aberto, acessível e não sacraliza os livros. Divulga livros novos e debate-os com os autores, aligeirando ainda mais com escusadas rubricas de magazine: uma declaração pré-gravada de um "conhecido" comentando os livros da sua vida (pergunta que se tem banalizado nos "media" ao ponto do insuportável) e a presença (entretanto desaparecida?) de pessoas "desconhecidas" leitoras de livros. Viegas consegue ultrapassar a dificuldade de dialogar numa mesa que foi mal desenhada para falar com outras quatro pessoas.

Livro Aberto não é um programa de ou sobre literatura. Isso também faz falta na televisão, mas por agora satisfaçamo-nos com este programa de Viegas, uma boa alternativa às noites vazias da TV generalista.

Correcção: um texto do "Expresso" que referi na semana passada não era de Fernando Madrinha, mas de José António Lima.