Eduardo
Cintra Torres
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Lágrima de Espectador |
Outros directos: os comentários de Sousa Tavares, apresentados como "directo Faro", numa insistência obsessiva da TV actual com o directo; uma ligação a Bagdad, de onde o enviado diz o que poderia dizer em Queluz de Baixo. Nove notícias usam imagens de arquivo, sempre em total dislexia com o texto: mal construídas, textos radiofónicos enchidos com quaisquer imagens. Exemplo: fala-se do "lay-off", vêem-se trabalhadores a rir numa reunião com o secretário de Estado do Emprego. Só uma das nove notícias aponta que as imagens são de arquivo. O "microfone de rua" ou "vox populi" surge em 17 notícias, mais de um terço; alguns irrelevantes, a maioria efectivamente ilustrando a narrativa. A escrita é, em geral, bastante má. As três primeiras notícias do JN, sobre o caso Casa Pia, têm partes incompreensíveis, pois o texto está em desacordo com as imagens mostradas. O vocabulário utilizado reflecte a péssima escrita de muito jornalismo televisivo português: recorre-se a muletas destinadas a encobrir falta de investigação e até, incrivelmente, incerteza dos "factos" relatados. A expressão "tudo indica" surge cinco vezes, as palavras "tudo", "todo" e "todos" surgem 11 vezes, a expressão "tudo aconteceu" surge uma vez e a palavra "nada" também uma vez. Estas palavras e expressões escondem a ausência de elementos factuais e a falta de rigor, pois em nenhum caso o "tudo", o "todo" e "nada" correspondem ao seu significado literal. A ausência de objectividade prossegue no uso do verbo "garantir" (três vezes), quando as fontes se limitaram a dizer, e das expressões "há quem ache que" (duas vezes), "vá-se lá a saber", "resta saber" e "à primeira vista" (uma vez), termos que revelam falta de cuidado no apuro e transmissão dos factos relatados. Recorre-se a expressões que negam a razão da própria notícia: o que é apresentado como facto não passa de hipótese. A palavra "talvez" serve para dizer que, usando-se fundos comunitários, um certo incêndio poderia não se ter verificado. O relato de uma tentativa de rapto coloca o facto no futuro condicional (fulano "terá raptado"), mas a frase prossegue no pretérito ("foi descoberto"). Verifica-se ainda que a notícia "Cão resolve mistério", promovida três vezes durante o JN, é falsa. Hora e meia depois do início do noticiário, às 21h28, o texto diz: "Desconfia-se que os ossos possam ser de uma mulher" (portanto, o mistério não está resolvido) e "terá sido" uma cadela (e não um cão) a descobri-los. O "jornalisticamente correcto" marcou as reportagens de Pedro Moreira em Tikrit e Bagdad. O enviado da TVI usa as formas verbais "supõe-se", "estarão a" e "acredita-se que" para fazer passar o que não confirmou. A manipulação prossegue, quando o texto diz que "a população está disposta a dar a vida", grave afirmação baseada na declaração pouco convencida e pouco convincente de um único indivíduo, assim transformado em "a população". O texto é incompetente e incompreensível: "Se há sítio em que a guerra não acabou é em Tikrit." Que actos de guerra ali ocorreram? Nenhum. "E agora luta-se com dinheiro. Os homens de Saddam têm milhões e cinco milhões de contos é quanto os americanos oferecem pela captura de Saddam." Que significa isto? Ter dinheiro e prometer recompensa são actos de guerra? "As pessoas aqui em Tikrit dizem que Saddam é um fantasma que não pode ser capturado." Isto é a sério? Quais pessoas? Todas? Um fantasma? Mas isto é um filme? No directo, o jornalista revelou outra grave manipulação. Considerou o atentado à ONU como um acto do povo iraquiano contra os EUA - quando se tratou de terrorismo, e possivelmente não iraquiano. O JN teve outros erros mais ou menos graves. Um tufão na China fez "13 desaparecidos" no título, mas "13 feridos" no texto lido. Mísseis israelitas foram definidos como "mísseis judaicos". Um brasileiro fala no "aides" e os espectadores portugueses não são informados de que "aids" é sida. Uma greve de contratados a prazo em Lojas do Cidadão é uma "greve nos notários" (?), de 250 pessoas, para mais à frente serem 85 por cento dessas 250. Naquela noite Marte estará "a olho nu", quando Marte é sempre visível a olho nu. Um facto da vida privada de Carlos Cruz (venda de uma casa) é feito notícia. Uma luta política contra uma nova divisão administrativa na Indonésia é transformada numa "guerra tribal". Uma eventual capacidade do vinho na prevenção do envelhecimento serve para promover abertamente bebidas alcoólicas a horas a que a publicidade não poderia recorrer (21h35). O oráculo diz "tintol" e o título é imperativo: "Beba vinho e morra velho!" O texto escrito no ecrã parece abundante, mas não é. As mensagens rolantes são sempre as mesmas e incluem publicidade ao grupo da TVI. O oráculo à esquerda e o título em baixo dizem a mesma coisa e não acrescentam informação adicional. Recorre-se ao popularucho (dois títulos usaram "tá" em vez de "está") e tenta-se tornar sensacionais, através de pontos de exclamação, cinco notícias vulgares: a do vinho, "Vem chuva!", "Benfica prepara-se!", "Tá ligado!" e "Tá legal!". No título mais absurdo chamou-se "Al Capones" a um casal de velhos de 80 anos (aliás, identificados como "septagenários") que atemorizam uma aldeia. Das 47 notícias, algumas estavam bem construídas, com texto correcto e imagens a condizer com cada frase. A maior parte não. O expoente foi a notícia do treino do Benfica em véspera de jogo com a Lazio. O texto é inqualificável: "Os benfiquistas sonham com isto - com os dois golos que precisam de marcar e com os que não podem sofrer para continuar a sonhar com a liga milionária." A frase revela o jornalismo desportivo de Portugal: refere-se a sonhos, não a factos. Nesta frase há três sonhos: golos por marcar, golos a não sofrer (!) e continuação na liga. O autor conseguiu este mimo, que é o de os benfiquistas "sonharem" com "continuar a sonhar". Mas há mais: a TVI tinha imagens para acompanhar a palavra "isto", o tal sonho dos benfiquistas. Ficou-se à espera de ver um golo marcado durante o treino. Mas o que se viu a seguir ao "isto" foi... um remate à trave. A lágrima do espectador, conclui a análise, é de rir e de chorar. |