Eduardo
Cintra Torres
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O Juiz Vai Precisar de Uma Camisola |
Venham ventos e tempestades! Que trema a terra e o mar se revolte! Que os rios saltem das margens e os vulcões cuspam fogo! - mas as imagens na televisão do juiz Rui Teixeira, em "t-shirt" ou blusão de ganga, serão sempre as mesmas. Com o fluxo contínuo de informação e a repetição das mesmas notícias, as televisões usam as únicas imagens que dispõem do juiz para ilustrar textos sem imagens próprias. O grande caso da pedofilia tem um lado mediático cada vez mais amplo. A acusação faz fugas de informação. Os advogados de defesa estão hora a hora nos telejornais. Júdice, bastonário da Ordem, dá-lhes ordem para eles se calarem, mas ele mesmo está hora a hora em jornais, rádios e televisões, em congressos, reuniões, à porta da Ordem, no corredor, onde for preciso. O zénite da relação entre os "media" e o grande caso da pedofilia surgiu nas duas últimas semanas. Primeiro, "O Independente", jornal dirigido por Inês Serra Lopes, filha de um advogado de Carlos Cruz, divulgou documentos que haviam sido roubados na Casa Pia e que alegadamente favorecem esse e outros arguidos. E no sábado o "Expresso" noticiou que a rede da Casa Pia se prolongou durante dezenas de anos pela RTP. A confirmar-se, chegámos ao limite: a rede de pedofilia, crime que passa também pela sua divulgação clandestina em fotos e filmes, utilizou com impunidade equipamentos e pessoas da RTP, tudo pago pelo orçamento do Estado, tal como a Casa Pia. *** Morreu em 12 de Agosto o padre jesuíta norte-americano Walter J. Ong. Tinha 90 anos. Escreveu em 1982 um dos livros que mais ajudam a entender os processos de comunicação da TV e outros meios electrónicos e a sua influência nas formas de pensamento e de aprendizagem. O livro, "Orality and Literacy" (Routledge, 1999), não está traduzido para português. Ong estudou com Marshall McLuhan. Mas, enquanto este se concentrou na evolução da palavra escrita para a impressa e daí até à aldeia global electrónica, Ong estudou a oralidade como meio de comunicação e nas suas implicações nos processos do pensamento (como Jack Goody). Para Ong, voltámos ao predomínio da oralidade agora que os novos humanos aprendem a linguagem através da TV, do CD, dos jogos, de outros meios electrónicos. É uma oralidade diferente da primitiva, é a "oralidade secundária", que, todavia, "depende da escrita" para a sua existência. No caso da TV, é difícil estudar seriamente os "talk-shows" e em especial os programas informativos (telejornais, debates, entrevistas), sem ter lido Ong, apesar de ele nunca se debruçar sobre este "media". Infelizmente, muitos estudos portugueses sobre TV, mas também os franceses, ainda não assumem esta abordagem, que já deveria constituir ponto de partida implícito e obrigatório. Aí, os académicos espanhóis vão anos à nossa frente. Os muitos comentadores portugueses que na imprensa escrevem sobre TV também ignoram esta dimensão essencial da comunicação oral e o que a distingue da comunicação escrita. Se McLuhan é iluminante pelas muitas intuições, verdadeiras estrelas cadentes do pensamento, Ong é mais consistente e sólido. Suponho que o trabalho de Ong sobreviverá mais tempo. *** O Big Brother (BB) lá recomeçou. Antes da abertura da "casa", Teresa Guilherme e a produção anunciaram um argumento previamente escrito: haveria sexo e violência muito rapidamente ("vão pôr tudo a nu"; "amam-se ou odeiam-se", "ao fim de dois dias...", etc.). Na noite de arranque, a Guilherme falou dezenas de vezes em pénis, literal ou metaforicamente. Fosse com os concorrentes, fosse com os pais, fosse com o seu escravo Pedro Miguel Ramos, a conversa foi sempre lá dar. Papás e mamãs disseram estar preparados para o argumento prévio de sexo ao vivo. Um deles disse que apoia o filho porque ele poderá encontrar fama e sucesso através do BB. Pelas parcas declarações dos pais compreendeu-se que consideram o sexo em directo ao mesmo tempo uma vergonha e um sacrifício necessário para garantir a vitória no mundo dos "conhecidos". Esta atitude reforçou a minha convicção de que uma razão profunda para o êxito do BB é a sua estruturação como rito de passagem da situação de anonimato à ambicionada situação de "conhecido", tese que defendi em "'Reality Shows', Ritos de Passagem da Sociedade do Espectáculo" (Minerva, Coimbra, 2002). O que não esperava é que a Endemol fizesse agora a mesma análise para aumentar as semelhanças do jogo a um rito de passagem, através de novas "provas" que os concorrentes teriam de ultrapassar para ganhar o direito aos colchões, às malas, etc.. Essas provas correram muito mal na primeira noite, porque eram idiotas, não obrigavam a qualquer perícia ou esforço. Além disso, como os concorrentes não se conheciam, pareciam baratas tontas. Foi má televisão. Pior que os Jogos sem Fronteiras. Poucos dias depois, já não seria assim: os concorrentes começaram a cumprir o argumento sugerido, quem sabe se exigido, iniciando as carícias sexuais com tanto empenho em representar bem para as câmaras que uma concorrente beijoqueira fez sangue na língua. A mãe disse ao "24 Horas" que lhe dava um par de estaladas - não por causa do sangue, mas por ser cedo para começar o jogo do sexo. A diferença do BB1 para o BB4 deve ser essa. No primeiro, os pais não estavam preparados para nada. Lembro-me da Teresa Guilherme convencer uma mãe de que a filha agia bem ao fazer sexo à vista de todos. Neste BB, os pais já estavam à espera do sexo em directo, mas, quem sabe, só lá para a terceira semana, não ao quinto dia. A Teresa Guilherme terá que os convencer outra vez. Os pobres pais e mães não entenderam que o BB se rege pelo ritmo da TV, não pelo ritmo das normas de comportamento cá fora. Nestes três anos aumentaram a concorrência e a fragmentação dos programas, o que obriga a argumentos mais rápidos. Os espectadores que adoraram o BB1 achariam uma maçada o BB4 se não houvesse provas na primeira noite e sexo na primeira semana. No entanto, o público está, para já, a pregar uma partida à TVI. O canal não recuperou a dianteira e, sem o primeiro lugar, o Big Brother faz menos sentido: a sociedade tem que dar atenção a todos os ritos de passagem para eles funcionarem como tal. O mesmo sucede ao BB. A quantidade interfere aqui, e muito, no valor social do programa. Uma coisa é quatro milhões de pessoas assistirem às irrelevâncias seculares dos concorrentes com um sentido religioso de partilha colectiva; outra coisa é a Teresa Guilherme anunciar que "os portugueses" vêem e votam e fazem trinta por uma linha com o BB - e a audimetria mostrar que eles estão a ver outros canais ou nem sequer ligaram a televisão. |