Eduardo Cintra Torres

Proletários de Todo o Mundo, Mostrai-vos!


Num país com leis, Piet-Hein Bakker, Teresa Guilherme, José Eduardo Moniz e Paes do Amaral não só estavam sujeitos à interdição imediata do programa como, porventura, seriam alvos de processos-crime.

A frase que encerra o "Manifesto Comunista" de Marx e Engels mantém-se viva, não na profecia que encerra, mas na sua poética força: "O proletariado não tem nada a perder excepto as suas grilhetas. Proletários de todo o mundo, uni-vos!"

Não sei se o Flávio leu o "Manifesto", mas, falando à "TV 7 Dias", ele disse que o amigo Fernando, actual concorrente do Big Brother, "está na casa porque não tem nada a perder." É assim nos dias que correm: quem não tem nada a perder, em vez de se unir aos seus iguais para perder as grilhetas, faz precisamente o contrário: fecha-se numa casa prisional e concorre contra os camaradas, como faz o Fernando no estúdio do Big Brother. Excepto nos assomos poéticos, o capitalismo venceu Marx e Engels.

É natural que até os comunistas já se tenham esquecido do final do "Manifesto". Os proletários vão sendo para a sociedade o que os dinossauros são para a paleontologia: fósseis. Por cá, os últimos proletários estão todos no Jornal Nacional da TVI: desde a velhota que tropeçou num degrau até aos que choram para as câmaras reivindicando suavemente "uma casinha" - choram como se as câmaras dos canais generalistas libertassem gás lacrimogéneo quando se carrega no botão REC.

Os herdeiros dos antigos proletários, para deixarem de o ser, não fazem a revolução, vão à televisão. A TV é a única entidade que consegue fazer as pessoas mudar rapidamente de estado social. RTP, SIC e TVI substituíram a Santa Casa e os sindicatos nas agendas telefónicas dos pobres. E a Endemol impôs-nos o Big Brother.

O BB é um rito de passagem em que os pós-proletários, os anónimos do mundo contemporâneo, têm de se mostrar para passarem a conhecidos. Não é certo que alcancem o êxito; a experiência mostra que o sucesso pode ser passageiro ou nem se verificar, como sucedeu com muitos concorrentes anteriores. Adiante veremos porquê.

A passagem não é fácil, a prova principal a que os concorrentes se sujeitam é a violentação da privacidade e a exibição constante do corpo. Há dias, o tal Fernando, estando espojado num sofá do estúdio do BB com outros concorrentes sem fazer nenhum, dizia que estar no BB é "muito difícil". Não era uma ironia, não se lhe pode pedir tanto. O BB é uma prova difícil porque tem que vender a alma e o corpo para chegar a ser conhecido.

A nova versão do BB tornou mais patente o lado da transacção comercial porque os concorrentes já não têm a ingenuidade dos primeiros, estão autoconscientes do seu papel e porque foram escolhidos apenas em função do corpo e da sua disponibilidade para o usarem ao fim de pouco tempo em manobras sexuais. Muita gente tem saudades do tempo em que os concorrentes do Big Brother falavam. São os próprios espectadores do BB quem diz nas revistas e nos "sites" que estes concorrentes são os "mais burrinhos". Isso pode ser uma injustiça e alguns concorrentes anteriores podem ficar ofendidos por assim os ultrapassarem, mas é verdade que a produção do BB4 deu o máximo para fazer dos actuais concorrentes meros objectos sexuais transaccionáveis.

Desde as camas partilhadas ao "jogo" proposto aos concorrentes que colocou raparigas em posição de "felatio", a produção visa quase só pôr os concorrentes a jeito de sexo ao vivo. A situação mais abjecta é o facto de a produção empurrar os concorrentes para as bebedeiras quase todas as noites, de forma a que, excitados pelo álcool, entrem em manobras sexuais, como sucedeu logo de início. A Endemol e a TVI fazem o que podem para embebedar os jovens concorrentes numa atitude social e ética totalmente inaceitável - se o país tivesse regras e alguma autoridade que agisse sobre os operadores de televisão. Num país com leis, Piet-Hein Bakker, Teresa Guilherme, José Eduardo Moniz e Paes do Amaral não só estavam sujeitos à interdição imediata do programa como, porventura, seriam alvos de processos-crime.

O sexo ao vivo é uma regra do jogo, os próprios pais estão prontos a aceitá-lo para os filhos passarem a ser "conhecidos". Teresa Guilherme disse a uma revista que "o sexo não vai ser pago, afinal de contas o Big Brother não é um bordel." Mas a verdade é que, com o sexo, os concorrentes estão a pagar o bilhete de entrada na sociedade do espectáculo. Este BB foi encenado como um telebordel.

Concorrentes e pais assumem o BB como esse rito de passagem sacrificial para o estado de conhecido. A Zélia foi a primeira a ser expulsa. O pai disse à "TV 7 Dias" que ela "só queria ser conhecida, para ver se surgia alguma coisa" cá fora, mas que "foi expulsa porque estava a ser uma rapariga decente".

A exigência de sexo ao vivo está a ultrapassar o que os pais de alguns concorrentes e até "o povo" estão dispostos a aceitar. O pai do concorrente Ricardo Martins disse-se "envergonhado com certas coisas [que o filho praticou], porque o povo não pensa todo da mesma maneira e eu próprio não penso da mesma forma".

São palavras que representam o que pensa uma parte da sociedade: não gosta da imposição das transacções sexuais ao vivo aos rapazes e raparigas que pretendem ser famosos. Se formos a ver, as edições anteriores do BB, apesar da aparente renovação de valores morais, revelaram que os valores enraizados na sociedade foram os que venceram: os únicos concorrentes do BB que sobrevivem nos "media" com uma cotação positiva são os que se casaram depois, tendo ou não praticado sexo ao vivo, como o Marco e a Marta e os demais casais fabricados no estúdio. Os outros não parece terem ganho o bilhete de entrada no mundo dos conhecidos, ou são enxovalhados e insultados nas revistas, como o Zé Maria. Só ganharam notoriedade positiva os que se casaram e tiveram filhinhos. É uma estória demasiado antiga no sangue das pessoas e da sociedade para ser destronada por um programa de televisão.

Quer dizer, a sociedade ou parte dela pode estar atraída pelo BB pelo que ele ainda contém de rito de passagem e de narrativa do quotidiano de jovens à beira do sexo deitando-se em quartos com vista para as câmaras. Mas está desencantada com a tentativa de transformação do estúdio num bordel à força, onde os concorrentes são embebedados como perus. Todavia, como entendem que os concorrentes estão ali sacrificando-se para conseguirem ultrapassar o rito, os espectadores mais depressa condenarão os fabricadores da façanha do que os jovens que se oferecem em sacrifício. A TVI que se cuide. Com a sociedade não se brinca.