Eduardo Cintra Torres

Três Apagões


O apagão [no Nordeste da América do Norte] revelou ainda como o 11 de Setembro marcou a história americana e foi profundo o êxito psicológico dos terroristas. Dois anos depois, a principal mensagem das autoridades americanas e das TVs foi, desde o primeiro segundo, a de que o apagão não resultava de terrorismo.

Primeiro apagão: as imagens impressionantes de centenas de milhares de pessoas nas ruas de Nova Iorque durante o apagão no Leste dos EUA e do Canadá, captadas do alto de prédios altos, revelam quanto o moderno urbanismo, o trabalho e o lazer dependem da energia eléctrica.

A multidão ocupando o espaço público recordou-me as descrições da gente nas ruas nas grandes metrópoles europeias no século XIX e primórdios do século XX. A literatura das multidões desse período era muito ideológica, mas resultava em primeiro lugar da visão do formigueiro humano nas ruas, tal e qual como Nova Iorque se apresentou no passado dia 14 por causa do apagão.

Ver centenas de milhares circulando ordeiramente e sem objectivo comum causava viva impressão aos escritores, sociólogos e jornalistas. O mesmo sucedeu quinta-feira, nos comentários que ouvi nas emissões americanas e inglesas. Quer dizer, sem electricidade, as ruas de Nova Iorque voltaram ao século XIX na realidade da gente nas ruas, nas imagens e nos comentários.

Outro aspecto do apagão foi o estranho ar das emissões televisivas resultante de não terem espectadores nas áreas atingidas pelos cortes de energia. Em certos momentos, sentia-se que faltava "o outro lado" da comunicação, os espectadores. A TV tem um lado interactivo muito forte que se manifesta subtilmente sem necessidade de aparelhos com essa capacidade técnica. Por outro lado, foi a falta da TV e da rádio que motivou algum pânico. No 11 de Setembro, cuja gravidade é incomparavelmente superior, não houve pânico. Havia televisão. Mas agora... Nova Iorque sem televisão?

O apagão revelou ainda como o 11 de Setembro marcou a história americana e foi profundo o êxito psicológico dos terroristas. Dois anos depois, a principal mensagem das autoridades americanas e das TVs foi, desde o primeiro segundo, a de que o apagão não resultava de terrorismo.

Segundo apagão: tornam-se mais frequentes as notícias sobre estreias de filmes comerciais nos noticiários televisivos. Isso seria normal e útil se as notícias o fossem realmente. Não são. Trata-se de promoção ou mesmo de publicidade inserida nos noticiários: o texto promove o filme; as imagens são os próprios clips publicitários criados pelos estúdios americanos, incluindo as frases publicitárias; os critérios são sempre os dos estúdios e nunca do jornalismo ou da crítica. São os operadores de TV pagos para incluírem estas "notícias" nos telejornais? Ou apenas aproveitam acriticamente os materiais de promoção que lhes são enviados pelos estúdios?

Esta publicidade é frequente também na rádio, seja nos canais privados seja nos públicos, como na Antena 2, onde costumo ouvir promoções acríticas de filmes. Ainda não vi os deontólogos do costume falarem deste apagão da crítica. Julgo que os jornalistas deveriam ser informados sobre o erro em que incorrem neste tipo de publicidade; e os operadores de TV deveriam dizer-nos quais os trâmites que os levam a fazer publicidade gratuita nos telejornais, o que é provavelmente ilegal.

Terceiro apagão: o fim do Verão é sempre marcado pela copiosa informação sobre as transferências da bola. A acrescentar à de Cristiano Ronaldo, esta semana soube da transferência do "comentador desportivo" Fernando Seara para a SIC Notícias e, principalmente, a mais importante da época, a transferência de Santana Lopes da RTP1 para a SIC.

No Expresso, Fernando Madrinha já chamou a atenção para o insólito "comunicado" de Santana dando a conhecer à Nação Portuguesa a novidade. Não se sabe se o comunicado é do autarca, do dirigente partidário, do comentador desportivo da Bola, do comentador político ou do talvez-sim-talvez-sim candidato a Belém. Julgo que o comunicado é do super-ego que os reúne a todos num só. Santana Lopes tem desenvolvido um ego de tal forma monumental que não posso ver este comunicado em mais nenhuma qualidade.

No comunicado à Nação, Santana posicionou-se televisivamente em relação (contra) o comentário de Marcelo Rebelo de Sousa. Chega ao ponto de afirmar que o seu comentário na RTP1 foi o programa "mais visto, repito, o mais visto, em várias semanas", isto é, mais ainda do que o professor da TVI. Contagem de votos? Seria impossível ao autoconvencimento de Santana aceitar que a maior audiência se devesse a factores que lhe foram exógenos como, por hipótese, a hora da concorrência ou até uma prestação de José Sócrates mais apreciada que a dele.

A relação de Santana com a imprensa, inscrevendo-se num género com virtualidades na actual sociedade mediatizada, está a tornar-se doentia, provavelmente em resultado do seu recorte psicológico e da sua ambição. Esta coisa de não haver dia útil ou fim-de-semana em que ele não plante notícias na TV ou na imprensa - seja ela imprensa do coração ou imprensa da razão - já ultrapassa os limites do razoável e, quem sabe, pode ser-lhe contraproducente.

Exemplo flagrante foi a longa entrevista que fez ao autarca lisboeta - a poucos dias da transferência para a SIC, sabe-se lá porquê - o jornalista Pedro Coelho, da SIC.

Essa entrevista é das mais revoltantes que tenho visto na TV portuguesa nos últimos anos. Trata-se da mais pura propaganda da personagem entrevistada, seja pelo género televisivo escolhido, seja pelas perguntas e pela atitude do jornalista. Pedro Coelho teve aqui o pior momento da sua carreira, que espero que não se repita, ou terei que lhe pedir que me devolva o Olho Vivo 2002 que lhe atribuí em Janeiro. Este foi um verdadeiro apagão do jornalismo.

Santana Lopes foi entrevistado em pé, em género passeio. Uma de duas câmaras ia circulando em volta do político como se ele fosse vencedor da Volta ou artista de cinema. Eu nunca tinha visto este género de realização (?) numa entrevista política, que exige distância ideológica e neutralidade visual. A entrevista começou na residência do edil em Monsanto (para ele dizer que dela pouco usufrui, naturalmente). Passou depois às metáforas visuais: o Parque Eduardo VII, no seu género de arquitectura "jardim de Estado"; depois, no Marquês de Pombal, a quem o jornalista convidou Santana a comparar-se, ao que este, agradado pela pergunta mas com a sua habitual modéstia, evitou responder por palavras (só depois do próximo terramoto, pareceu dizer o seu gesto vago); depois, à porta da Câmara, onde ele exerce actualmente; o percurso terminou (adivinhem) no local que simboliza o poder máximo na Pátria, o Terreiro do Paço, onde está a estátua equestre do chefe de Estado D. José. Mas claro, a modéstia impede o autarca de dizer se ambiciona Belém. Também não era preciso dizer: a cenografia da entrevista respondia cabalmente.