Eduardo Cintra Torres

A Ideologia Mediática


O objectivo deste documento é dizer: estávamos lá, estávamos preparados e por isso fomos os primeiros e fizemos esta e aquela reportagem.

A RTP editou com o PÚBLICO um DVD apresentado como "um documentário essencial" para compreender a guerra do Iraque. Esta louvável iniciativa permite a espectadores e investigadores dispor num só suporte de documentos mediáticos que valem como testemunhos dos eventos e pela sua própria materialidade televisiva. O modelo seguido parece ser "What We Saw", livro e DVD da CBS (2002), apresentados por Dan Rather, o "anchor" da cadeia norte-americana, sobre o 11 de Setembro. O DVD faz jus ao magnífico título "o que nós vimos". As imagens tornam-se fundamentais para a assimilação e o reforço da memória, no sentido em que a estudiosa Barbie Zelizer se refere às do Holocausto em 1945 e do 11 de Setembro: exercem uma função reforçada de "bear witness", prestar testemunho (em "Journalism After September 11", 2002).

O DVD da CBS está muito bem arrumado. A narrativa começa onde se adivinha: estava uma bela e límpida manhã de Setembro... O primeiro capítulo chama-se adequadamente As Testemunhas, os três restantes As Vítimas, Os Heróis e Os Sobreviventes. Há, porém, importantes imagens do dia 11 que estão omissas.

"What We Saw" tem uma apresentação sóbria, patriótica q.b. Os segmentos são identificados pela hora a que ocorreram. O objectivo do DVD é cumprir o título, mostrar o que eles viram, prestar testemunho. Embora a CBS esteja presente por ter sido ela que "viu", o DVD centra-se no que é visto e não em quem vê.

O DVD "Objectivo Bagdad", da RTP, segue o modelo. O livro é substituído pela inclusão de parte de textos do PÚBLICO nas primeiras semanas da guerra do Iraque. Não há enquadramento nem tábua cronológica. O enriquecimento do DVD com os textos (e houve reportagens notabilíssimas de jornalistas do PÚBLICO no Iraque) reduz-se ao arquivístico e documental.

Quanto à parte audiovisual, a RTP fez um documento de 71 minutos. A frase de que se trata de "um documentário" é propaganda que parte do equívoco habitual do nosso pobre jornalismo televisivo sobre o que é um documentário e o que é uma reportagem. Tal como o da CBS, também este DVD é apresentado pelo responsável da informação do canal e também nele se juntam reportagens realizadas pela estação nos dias-chave do evento.

As semelhanças, porém, terminam aqui. "Objectivo Bagdad" é um documento que não pretende prestar testemunho sobre a guerra, mas apenas sobre a cobertura da guerra pela RTP. Trata-se de um, mais um, momento de onanismo jornalístico, de glorificação do trabalho da direcção de informação da RTP.

O objectivo deste documento é dizer: estávamos lá, estávamos preparados e por isso fomos os primeiros e fizemos esta e aquela reportagem. Assim, uma parte importante do DVD é preenchida a mostrar e a falar, não da guerra, mas da RTP e seus repórteres.

Diz-se duas ou três vezes que a RTP foi a única do mundo a mostrar imagens do início do ataque a Bagdad. Para que não sobrem dúvidas, reproduz-se uma reportagem marginal feita à época no Rio de Janeiro de glorificação da estação portuguesa. Em 12 capítulos, há um chamado As Primeiras Imagens, outro Os Jornalistas e ainda um terceiro sobre a televisão iraquiana.

Por se tratar de um DVD sobre a informação da RTP e não sobre a guerra, o documento é confuso e incompleto. Quase não se percebem as razões da guerra, quanto durou, que países participaram, qual o papel de Portugal. Não se vê uma única declaração ou imagem de Bush, Powell, Rumsfeld, Blair, Chirac, Putin, Sampaio, Barroso, Aznar ou até Saddam. Mas vêem-se em abundância Rodrigues dos Santos, Carlos Fino, Nuno Patrício, Luís Castro, Márcia Rodrigues, Cesário Borga e outros repórteres da RTP. Nem sequer se vêem os comentadores militares - por terem o azar de não serem da RTP.

Não se vêem Washington, Londres, Bruxelas, ONU, Lisboa, nem mesmo a cimeira das Lajes. Mas vê-se o estúdio da RTP na 5 de Outubro e o quarto de hotel de Fino e Patrício. Vêem-se menos a morte e o sofrimento dos civis iraquianos do que o sofrimento dos repórteres portugueses e a morte de repórteres estrangeiros.

"Objectivo Bagdad" é incompetente nos pormenores. R. dos Santos fala no presente exactamente no mesmo local do estúdio e com a mesma iluminação com que falou nas imagens do passado ali reproduzidas, o que cria confusão temporal (além de que essa intervenção do apresentador é irrelevante do ponto de vista documental). Nenhuma reportagem é datada. A certa altura, falando do jornalismo (há mais alguma coisa para falar?), R. dos Santos refere, e bem, uma nova personagem desta guerra, o vídeo-telefone - mas não só não nos mostra imagens do seu uso concreto na guerra como o descreve por palavras sem o mostrar fisicamente, a seu lado, nas suas mãos.

Este documento é mais uma pedra na construção de uma ideologia mediática que sobrepõe a imagem ao facto. Os factos não contam, só o seu relato. A guerra do Iraque não interessa para nada, só interessou a oportunidade proporcionada de mitificar a sua cobertura pela RTP.

Sucede o mesmo com a cobertura dos incêndios florestais pelos canais generalistas. Há uma clara transformação do mar de chamas em mar de imagens. Os telejornais repetem ad nauseam as imagens "mais fortes", sejam elas quais forem, sem qualquer relação temporal com a notícia que passa. Estas imagens são de há três dias? Não faz mal, pois vê-se gente a chorar. E estas, têm uma semana? Mas vejam, vê-se que até o jornalista está aflito. Para a ideologia mediática, ainda é mais "forte" a imagem do jornalista aflito do que a do aldeão a chorar.

Quanto mais "forte" a imagem mais a repetem. Os dois debates da RTP a propósito dos incêndios, uma boa ideia, tornaram-se insuportáveis porque a divisão do écrã entre as cabeças falantes e as mesmas imagens de fogos dispersava a atenção. A sobrecarga de imagens dos incêndios visava criar "animação" do ecrã.

Este tema fez-me lembrar um texto de Theodor Adorno sobre a TV. Adorno (1903-69) foi o principal pensador da "Escola de Frankfurt" e é muito citado em comunicação e jornalismo. Neste Agosto, o ARTE apresentou sobre ele um óptimo documentário alemão de 2003 em duas partes.

Nesse ensaio de 1954, refere de passagem, no seu estilo ensaístico de constelação de ideias, o "slogan" "arte pela arte" para referir que não há arte pura, sem ligação ao comércio, em oposição aos "mass media". O que pensaria Adorno hoje da ideologia mediática? Não será ela, afinal, uma apropriação da ideologia da "arte pela arte" pelos "mass media"? Não será esta autoexibição permanente uma demonstração em modo rude e "kitsch" de que a forma da mensagem é mais importante que o seu conteúdo? Da "arte pela arte" ao "'kitsch' pelo 'kitsch'"?.