Eduardo Cintra Torres

Margaret Thatcher Caiu das Escadas


A realidade e a televisão, essa dupla explosiva, estão em permanente metamorfose, como o vírus da gripe. O encontro da Arrábida revelou a inquietação dos criadores da teoria das telecerimónias perante a evolução do "media" televisivo e perante a sua integração crescente na forma de se criar factos que são eventos, como o 11 de Setembro.

Em 1982, Margaret Thatcher caiu das escadas do Palácio do Povo, na Praça Tiananmen, em Pequim, após terminar uma reunião com o líder chinês, Deng Xiaoping.

Tropeçar é vulgar; Thatcher seguiu caminho. Mas ela não era um de nós em casa. Era a chefe do Governo de uma potência mundial. Entre os restos do império britânico, sobrava Hong Kong, território de pujante capitalismo encravado na China. E a reunião de Thatcher com Deng, minutos antes, tivera um tema inesperado: pela primeira vez, desde 1949, um líder da República Popular afirmava o desejo de negociações para a transferência de soberania de Hong Kong. A diplomacia britânica foi apanhada em falso — e Thatcher apanhada em falso num simples degrau.

O tropeção ganhava outras dimensões. Haveria outros factos em redor do trivial incidente? Na descida da escadaria, a governante inglesa foi importunada por jornalistas chineses, facto inusitado num regime de protocolo rigoroso como o da China ditatorial e ancestral. Enquanto descia os degraus que mais simbolizam o poder chinês, Thatcher era confrontada com microfones, fios, vozes, pernas e mãos e cabeças de repórteres, num local onde ninguém os vira antes.

Surgiu uma interpretação: a presença dos jornalistas chineses (seriam agentes secretos?) fora propositada para incomodar Thatcher, para a achincalhar num momento difícil ali criado por Deng e em que era previsível a sua perturbação pessoal. O tropeção resultaria de um plano meticuloso.

Anos mais tarde, outro incidente permitia ver uma ligação. Quando o último governador de Hong Kong, Chris Patten, visitou pela primeira vez território chinês, à saída da reunião o seu automóvel tinha um pneu furado e ele teve de esperar na rua enquanto o motorista o substituía. Outra "queda", digamos assim.

O tropeção de Thatcher foi visto em todo o mundo pela televisão. Havia no facto trivial, o mais desligado possível da política e do comportamento, matéria de notícia? Deveria a TV mostrar as imagens só porque as câmaras estavam lá? O que fazia delas notícia?

Ao olharem as imagens, jornalistas e espectadores não viam só o facto, mas a simbologia da queda, ou melhor, podiam ver várias simbologias: desde logo, a pura comicidade da cena, que foi explicada, por exemplo, por Henri Bergson em "O Riso" (1900); a queda a caminho do mundo subterrâneo, como indicam os estudos simbólicos; a queda de um poderoso; a queda de um poderoso infligida por outro poderoso; a irrisão do império britânico perante a grandeza do império chino; a perda (ou a recuperação) de Hong Kong.

O tropeção entrava no campo da representação do palco do mundo e estava, por isso, sujeito a muitas interpretações. O pequeno facto abandonava o caos da realidade e subordinava-se à ordem do espírito, onde se desprendia da sua materialidade e se tornava, não uma, mas duas, três, tantas ideias quantas as interpretações. O facto deixava de ser um facto. Tornava-se um "evento". Mediatizado.

O poder da representação é tão forte que se sobrepõe às intenções dos actos que ocorrem no mundo real, ou à ausência delas, como sucedia no tropeção de Thatcher — a responsabilidade do qual, bem vistas as coisas, só a ela mesma se pode atribuir.

Em 9 de Abril de 2003, um fuzileiro americano pendurado num tanque invasor (ou libertador, ou ambos) colocou uma bandeira americana na fronha da estátua de Saddam Hussein em frente do hotel dos jornalistas estrangeiros em Bagdad. Depois, retirou-a e substitui-a por uma bandeira iraquiana. A seguir a estátua foi derrubada. Na sucessão de factos é tanta a carga simbólica que o espectador fica incapaz de os libertar da canga ideológica que ele mesmo transporta.

Teria aquilo sido preparado? Haveria a consciência de se encenar, para o dia e para a História, a vitória americana e o fim de Saddam? Na passada terça-feira, o fuzileiro Edward Chin teve a honra de atirar a primeira bola num jogo de basebol entre os Mets e os Braves no Shea Stadium. E explicou a sua participação no facto com desconcertante simplicidade.

Visto na TV, disse, as coisas parecem "um bocadinho diferentes". "O que eu estava a pensar foi: 'Isto é uma estátua bem grande.' Não parece tão grande lá de baixo, mas quando a vi face a face, era muito grande. Não sabia como a íamos deitar abaixo." Disse que teve ajuda de outros fuzileiros que estavam no chão e lhe iam dando ordens: "Eu só estava a fazer o que me diziam lá de baixo." Chin fez o facto, a televisão e o espectador fizeram o evento.

À mesma hora em que Chin era homenageado, a milhares de quilómetros do ruidoso Shea Stadium, algumas dezenas de pessoas reuniam-se a discutir eventos mediáticos no Convento da Arrábida, onde o silêncio faz parte da arquitectura ecológica de frades antigos.

Vários, entre os quais os criadores do conceito de acontecimentos cerimoniais em televisão, Elihu Katz e Daniel Dayan, falaram de factos que se tornam eventos e que, a serem eventos, se transformam noutros factos: imagens, palavras e sons na TV. A queda da estátua de Saddam foi um dos factos-eventos referidos nos dias de reflexão.

A realidade e a televisão, essa dupla explosiva, estão em permanente metamorfose, como o vírus da gripe. O encontro da Arrábida revelou a inquietação dos criadores da teoria das telecerimónias perante a evolução do "media" televisivo e perante a sua integração crescente na forma de se criar factos que são eventos, como o 11 de Setembro. O que me pareceu mais extraordinário foi que Dayan e Katz caíram na sua própria "armadilha": ao pretender evoluir e adaptar a sua teoria a eventos não cerimoniais, confundem facto e evento.

Katz apresentou uma tese determinista que se faz do seu contrário, o fatalismo, por ser pessimista: segundo disse, a telecerimónia é hoje anulada porque a seguir advém a morte e a destruição do que foi nela homenageado (Diana casa-se; Diana morre). Ora, a telecerimónia é um "media event", pelo que nenhum facto posterior pode anulá-la. Dayan avançou uma tese em que confundiu a autolegitimação do facto (a Al-Qaeda "valida" o 11 de Setembro) com a legitimação televisiva que, essa sim, institui o evento mediático: a validação vem dos autores, do poder, da televisão, da opinião pública e do espectador. Como outros investigadores, Dayan e Katz não conseguiram integrar um acontecimento maior que a morte, o 11 de Setembro, em esquemas racionais. Mas Dayan e Katz apenas ali testavam ideias. Espero que voltem para o ano, e que um novo encontro na Arrábida seja em 2004 um facto e, já agora, como este, um evento.