Eduardo Cintra Torres

Contagem de Bandeiras Azuis


O Verão lisboeta, mesmo quando o clima não ajuda, é Verão por dentro: não se faz nada. Os canais generalistas entram em veraneio logo que podem para repetirem com legitimidade as suas latas de bom petisco televisivo de manhã à noite.

O Verão é o tempo em que a televisão redescobre os incêndios florestais com a alegria de nos mostrar a mínima mancha de mato ardendo na noite iluminada e gente rural chorando o susto das chamas à porta de casa. O Verão é o tempo em que se faz em directo a importante contabilidade das bandeiras azuis: a praia tal perdeu a bandeira azul porque o bar da praia não tinha chuveiro; a praia tal também perdeu, mas porque desaguava nela o rio de bosta de porco de toda a região. O Verão é o tempo em que as televisões filmam rabos untados de creme em Carcavelos com o mesmo "zoom voyeur" com que a BBC filma cenas de sexo entre as zebras da Tanzânia. O Verão é o tempo em que as televisões alongam os noticiários com reportagens intermináveis por não terem notícias intermináveis. O Verão é o tempo em que os noticiários dedicam quartos de hora ao futebol sem haver futebol.

Às vezes há notícias. Esta semana foi a de Berlusconi no Parlamento Europeu. As TV só me deram parte dos factos. Se não fosse o "blog" nada abrupto de José Pacheco Pereira eu não teria sabido como as coisas se passaram. Pacheco Pereira, que estava lá, escreveu que o seu relato não era jornalístico, mas foi melhor que o de todos (seria ironia de Pacheco Pereira?). Os apontamentos televisivos deram-me a versão "consensual" do jornalismo europeu, onde não cabem factos - factos, repito - que saltem fora do penico consensual. O relato de Pacheco Pereira colocou-me mais perto do que aconteceu e deu-me um contexto totalmente diferente.

No género jornalismo de Verão, temos ainda a frase histórica de José-Manuel Barata Feyo para José Rodrigues dos Santos. Parece saída dum dramalhão do século XIX para ler na praia: "Não podes estar com Deus e com o Diabo: ou estás com a administração ou estás com a redacção". Note-se como, na ordem dos elementos da frase, a administração é Deus e a redacção é o Diabo. Lapso de linguagem de quem está na prateleira há muito. Faz aflição este estilo de quem vive do passado profissional e não faz nada de jeito em televisão há não sei quantos anos e invoca emprateleiramentos. Eu não acredito em prateleiras de dois, cinco ou dez anos.

Rodrigues dos Santos também tem as suas frases. Além do mau gosto de invocar grau académico para justificar a praxis jornalística, ele disse, a propósito do caso da felgueirada brasileira: "Não há jornalismo público e privado, mas há bom e mau jornalismo." É isso mesmo. O caso da felgueirada da RTP1 foi apenas mau jornalismo.

Se os programas de Inverno já tendem para a tolice, o Verão exagera. Não poderei dar conta ao leitor nem de todos nem de nenhum em profundidade. Em meu socorro, chamo o snob do Oscar Wilde, que dizia que bastam 10 minutos de leitura para se saber se um livro é bom ou mau. Sendo mau, não vale a pena continuar: o resto sê-lo-á também. Que diria Wilde sobre os maus programas de televisão? Quantos minutos é preciso vê-los? Eu só passei os olhos por À Sombra da Bananeira (SIC, diariamente), programa que poderá ser o mais vazio de sempre na categoria de entretenimento popular para jovens sem nada para fazer. É pior ainda do que as tripetições (neologismo para repetições repetidas) de Camilo, o Pendura e Lições do Tonecas na RTP1, A Minha Família é Uma Animação, Não Há Pai e Malucos do Riso na SIC, ou Bora Lá Marina e telenovelas da véspera na TVI.

A TV generalista, sem um tostão para fazer programas decentes, agarra-se ao novo género das tele-anedotas, que não exige (a palavra é forte) mais de um minuto de atenção consecutiva para o ecrã. Na SIC, o Levanta-te e Ri já esgotou o "stock". Não há ali nem um naco de "stand-up comedy", apenas anedotas de pouco humor. Fernando Rocha, o brejeiro talentoso, percebeu entretanto que as anedotas não precisam de ter piada, basta-lhe dizer o maior número de palavrões possível. E é isso que ele faz, num exagero em que vai perdendo as qualidades que o promoveram.

Os Malucos do Riso mostram o país que vê TV generalista: a SIC repete os mesmos episódios de anedotas há oito anos e o êxito de audiências mantém-se. Ao lado, a TVI insiste com Marina Mota. A RTP, que, como as privadas, não tem dinheiro para programas (paradoxo das nossas televisões: só não têm dinheiro para aquilo a que são obrigadas), repete o menino Tonecas, que critiquei aqui em 1997. Ao pé dos outros programas de anedotas, o Tonecas é o "Citizen Kane" e os Malucos do Riso é o "Couraçado Potemkin". Grande consolo.

A TVI entrou no Verão desenfreada: os novos programas de apanhados da TVI são três, e são monstruosos. Antigamente, a televisão tinha apanhados de 30 segundos. Agora um apanhado demora trinta minutos. Se o leitor não acredita, vá fazendo "zapping" em cima do Apanhadíssimos da TVI. Eu juro que só vi o primeiro, em que montaram uma cena idiota com o péssimo Nuno Graciano e com a péssima Gisela Serrano num restaurante tão "kitsch" que parecia um cenário duma telenovela da TVI. Tudo aquilo cheira a aldrabice, o que é só um bocadinho grave, mas o pior é que não tem pinta de piada. Até entrevistam a "vítima" do apanhado em sua casa, rodeada do marido, da mãe e da avó.

Falsificação ainda maior é uma coisa chamada Armadilhados, apresentado por uma criatura chamada Serginho. É também um programa de apanhados encenados, tal é a imaginação e o orçamento que dominam os programadores de TV. Estes programas de apanhados são uma espécie de "reality jokes", para criar um neologismo de veraneio, muito à estrangeira.

Dois não chegava, porém. A TVI apresenta um terceiro programa de apanhados, esse sim, um clássico, o Olhó Vídeo. Mostra, como sempre, criancinhas que os pais põem a cair do triciclo e bolos de noiva que caem, como que anunciando futuro divórcio. O pior do Olhó Vídeo é a apresentação por esse inenarrável Cláudio Ramos, uma impossibilidade teórica até o vermos na prática. Não é só mau pela imitação ridícula e medíocre da mentora Teresa Guilherme, é mau porque é tudo ruim na pose, na voz, nos gestos, na dicção, na leitura, no vazio, na ausência de humor, etc.

A RTP1 apresenta Passo a Palavra, um concurso que parece feito por uma televisão local italiana tentando imitar a RAI Uno. O programa é apresentado por Nicolau Breyner, que foi repescado em saldos de Verão (do Verão de 1973). Está bem, está bem, Nicolau Breyner é simpático, mas falemos verdade por uma vez: não tem piada nenhuma e não tem lá muito jeito. Mas eu disse que é simpático, OK?

O Verão está assim.