Eduardo Cintra Torres

Uma Crítica Atrasada como Ponto de Partida


Há quanto tempo passou na RTP1 o teledocumentário "Quanto Tempo", de Luís Osório? Já nem sei, mas a crítica que então escrevi ficou este tempo todo fechada num ficheiro de computador, a moderna gaveta de quem escreve. Outros assuntos passaram à frente. A ele regresso, como ponto de partida para outro tema.

Com realização de Margarida Moura Guedes, "Quanto Tempo" está "no fio da navalha", como então escreveu Eduardo Prado Coelho no suplemento Mil Folhas do PÚBLICO. Sete anos depois de entrevistar o pai, José Manuel Osório, para o Portugalmente (RTP2), o jornalista volta a confrontar-se com ele no espaço público, desta vez num documento mais longo e ambicioso. José Manuel é portador do vírus da sida há quase 20 anos e desde então tem passado o calvário da doença e dos tratamentos, bem como uma alteração radical de vida.

Ao expô-lo e ao expor-se, Luís Osório não facilita o seu trabalho e a sua presença no seu espaço profissional, nem facilita a vida do espectador. Se é verdade que os espaços público e privado estão hoje num mesmo plano, se é verdade que a vida privada que a sociedade "exige" que se resguarde é um espaço cada vez menor, não é normal entre nós que esta mistura público-privado se faça num registo de total seriedade e sem qualquer elemento de entretenimento perturbador dessa seriedade.

Com altos e baixos nos seus projectos, Luís Osório marca-os de uma qualidade importante: os seus são programas portugueses que saem fora dos modelos e formatos e preconceitos audiovisuais da nossa pequena terrinha. Não são como as reportagens do costume, nem como os teledocumentários do costume. Querem estar no fio da navalha para provocar o público e para o próprio Osório se testar.

Em "Quanto Tempo", os dois Osórios expõem a intimidade para dizer que ela não existiu e que quase não existe na relação entre ambos. O passado que une pai e filho é pequeníssimo; dói ver como o tentam inventar, dar-lhe importância, como tentam fixá-lo como real usando o próprio processo mediático do filme. Psicólogos e psicanalistas a quem este teledocumentário servirá de ferramenta em aulas poderão confirmar a ideia com que fiquei de que o pai Osório recupera os anos em que não esteve com ele disponibilizando-se a dar ao filho um passado — e este filme.

Há em "Quanto Tempo" um constante vaivém entre o que o jornalista diz que o teledocumentário não é ("um ajuste de contas") e aquilo que ele também é (esse mesmo ajuste de contas, nem que seja na busca do tempo perdido). Que interesse pode haver numa relação deste tipo não codificada, isto é, facilitada, pela ficcionalização?

"Quanto Tempo" levanta dúvidas, porque a intimidade posta a nu tem aspectos de duvidoso interesse humano e social, quando destinado a um "mass media". Ali o interesse está onde os seres humanos sempre o têm: a sua complexidade, o que dizem para esconderem o que dizem, a necessidade do filho em falar tanto de si na entrevista, dando-se a conhecer a todos e ao pai, a quase total ausência ou controlo da emotividade pelo pai.

Documentários na primeira pessoa, ou documentários de ensaio pessoal, existem há décadas nos anglo-saxónicos, mas não têm tido expressão entre nós, pela diferente cultura do eu e da sua exibição pública. Mas a TV, importando modelos e "naturalizando" comportamentos até aí estranhos à sociedade, tem contribuído para uma poderosa mudança. "Quanto Tempo" inscreve-se numa revolução subterrânea que teve expoentes comerciais e populares como o Ponto de Encontro (SIC), no qual se reencontravam pessoas perdidas ou desavindas, e noutros programas em que pessoas pediam frente às câmaras o perdão que não conseguiam pedir em privado.

Não é possível afastar "Quanto Tempo" dessa tendência já nada subterrânea de resolver problemas privados no espaço público. Neste teledocumentário confessional estamos, naturalmente, num registo oposto ao dos programas de entretenimento baseados na divulgação das vidas privadas. Nestes, produção e realização controlam a narração das estórias dos participantes e o discurso através do apresentador.

No caso de "Quanto Tempo", o narrador Luís Osório toma conta da narração e é ao mesmo tempo uma personagem, o que é característico do género do documentário confessional. Mesmo que a personagem se esconda sob o jornalista que entrevista o pai, Luís Osório é não só narrador, como a personagem principal do documentário, à frente e atrás da câmara, e até quando, seguindo o pai, vê os próprios sentimentos, como o de comiseração, ao espelho do contracampo.

Esta capacidade de as pessoas, sejam elas mais ou menos criativas, apresentarem a sua vida pessoal em narrativas e documentários enquanto intervenções públicas, existe não apenas na TV mas na Internet e no vídeo. "Sites" pessoais e blogues fazem parte dessa possibilidade maravilhosa de toda a gente ter acesso a um meio técnico que lhes permite dizer o que querem, quando querem e para um público tão surreal (o mundo inteiro, sem se saber onde, mas certamente num computador privado, símbolo de intimidade) que podem dizer o que lhes apetece com uma liberdade inebriante. Os blogues são gavetas abertas.

Quanto ao vídeo, há hoje uma disponibilidade de meios acessíveis que permite a centenas, milhares de portugueses criarem os seus próprios objectos, muitos deles pontos de vista e declarações pessoais sobre algum tema em forma de vídeo. Há festivais e mostras deste tipo de trabalho, a que a TV em geral não dá a mínima atenção, numa manifestação que é ao mesmo tempo de conservadorismo (desinteresse por novas tendências criativas) e de burrice (nelas se encontram talentos em potência para a própria TV profissional).

Se Luís Osório teve o mérito e a capacidade de criar o seu documentário confessional para um "mass media", muitos há sem esse acesso, pessoas criativas cujo talento, se o há, estiola na pobreza económica e organizacional do país. Esses cidadãos só são anónimos porque os deixamos continuar a ser. Para eles deveria haver um espaço no canal herdeiro da RTP2. É absurdo pensar que os muitos pequenos filmes, documentários e experiências em vídeo que fazem indivíduos ou grupos de estudantes e de amadores não devam passar num canal público por terem pouca qualidade técnica ou outra.

A qualidade não é argumento, quando a TV em geral, e a generalista em particular, está tão cheia de porcaria até ao tampo. Mesmo que não tenham toda a qualidade do mundo, alguma terão, nem que seja a de representarem partículas de pessoas de carne e osso que formam essa coisa chamada "sociedade civil", realidade que desde há um ano os reaccionários de esquerda e direita, incluindo deputados, vêm dizendo que não existe.