Eduardo Cintra Torres

A Verdadeira Primavera Marcelista


O comentário de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI tornou-se a missa de domingo da crítica política: não é obrigatória, mas quem não assiste fica em falta. A importância desta conversa em família no sistema comunicacional tem explicações que lhe são internas e externas. Comecemos pelas últimas.

1. Há um vazio de liderança comunicacional no país. O Governo, ao contrário do anterior, não tem política de comunicação, o que constrói o apregoado clima de desânimo da pátria. O PS parece um desses filmes de catástrofes dos anos 70 com tremores-de-terra sem fim. O PCP fechou-se nas concelhias e distritais e o Bloco de Esquerda esgotou-se no Fórum. Resta-nos o Professor Marcelo.

2. A concorrência não lhe faz sombra. No canal público, Santana Lopes, num tom enfadado de quem condescende em dizer-nos algo do tudo que sabe, não é crítico nem porta-voz do partido, apenas usa o espaço público para construir uma carreira. O mesmo faz José Sócrates, que traz as ideias arrumadinhas e prepara as intervenções como um colegial, não como um professor.

Sócrates & Santana convergem amíude, não por concordarem, mas por adoptarem um ar de quem gostaria de estar de acordo com o outro. Muitas vezes estão, não só porque o bloco central é estruturante na vida política, mas porque fazer do estúdio da RTP1 uma praça da concórdia pode ser frutuoso nos seus percursos políticos. Dupont e Dupond, portanto. Distinguem-se na terminação.

A SIC Notícias é mais abrangente que a RTP1 nos políticos comentadores. Mas o leque partidário não aquece nem arrefece o verdadeiro esclarecimento. Dos outros comentadores, destaco o director do "DN", Bettencourt Resendes, melhor a falar do que a escrever, pela vivacidade e algum espírito de humor que incute às suas intervenções, marcadas pela independência, característica fulcral da crítica.

António José Teixeira, talvez porque no passado oscilou do PSD para o PS, tem dificuldade em manter esse registo de independência sem receios. Comenta em estilo gorduroso de dentro do regime para fora, quando o que distingue a crítica é a capacidade de se colocar de fora para ver o que outros não vêem.

Quanto a Luís Delgado, eis uma banha-da-cobra com que a direita ignorante gosta de se enganar. Foi esperto, há anos, quando viu que havia um nicho de mercado para "comentador de direita", então inexistente nos "media" de referência. Mas as suas posições servem um percurso próprio e não o esclarecimento dos espectadores. A sua fidelidade à direita é dúbia, tendo em conta os seus elogios ditirâmbicos a António Guterres, então primeiro-ministro, e a Murteira Nabo, então presidente da PT.

Na TVI, o comentário de Miguel Sousa Tavares é o único sucinto. Curto, claro, independente. Enormes qualidades. Mas é às vezes caprichoso, superficial e pouco informado, o que revela uma faceta de displicência dandista.

Sobra Marcelo. É o único político a que todos se referem pelo nome próprio (se considerarmos que Sócrates faz de apelido no "petit nom" político do deputado José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa). A esse capital de simpatia corresponde a maior notoriedade. Num inquérito, Marcelo surgiu como a personalidade pública mais influente (José Nascimento, "Os Influentes", revista ISCEM, 07/2002). Noutro inquérito recente do mesmo autor, Marcelo é o "líder político" com o maior grau de confiança, único entre 16 nomes que apresenta valor médio superior a três numa escala 1-5: só o professor das notas tem nota positiva. A popularidade não resulta só da notoriedade, que outros também têm, mas das qualidades da sua prestação na TVI.

O comentário de Marcelo é uma aula televisiva. Perante o professor, o jornalista em estúdio abdica da sua missão e deixa até que Marcelo entre em circuito fechado ou insista em temas desinteressantes. O jornalista representa o papel de aluno passivo. A TVI acentuou este quadro cénico com o passo óbvio de anular inúteis apontamentos gravados que serviam de prólogo às aulas de Marcelo e se intrometiam no discurso do professor, roubando-lhe tempo.

Marcelo fala agora mais de meia hora seguida sem intermediação jornalística. Há aqui um feito extraordinário de comunicação: haverá no mundo democrático ocidental outro comentador de televisão que aguente uma audiência interessada durante tanto tempo sem interrupção? Marcelo tem a experiência da docência, mas isso não chega. Professores há muitos, mas nenhum como ele. O que o distingue?

1. Ele adora o que faz ali. Nota-se, isso dá-lhe a empatia do espectador. Alimenta essa empatia usando como processo uma repetida e elegante descida ao mundo do povo, embora uma vez por outra sem à-vontade ou com uma pinta de populismo.

2. A intervenção é polissémica. Raro se encontra um comentador que articule um discurso prenhe à partida de duas ou até mais leituras. Poucos saberão, como ele, fazer um elogio a um político que seja entendido como tal por quase todos mas que ponha as orelhas do visado a corar. Além disso, o comentário consegue grande profundidade num discurso acessível.

3. Marcelo está muito informado sobre a vida política e prepara bem quase todos os outros temas (mas às vezes estica um pouco demais a intuição).

4. Fornece uma visão coerente, estruturada, do mundo das notícias que, pela sua diversidade, é por natureza caótico. Como crítico, estabelece hierarquias, explica o que considera importante, articula uma realidade que o espectador vê desordenada.

5. Ele alcança um resultado de que muito se fala em teoria: é um líder de opinião; tem poder para indicar a governantes e oposicionistas o que fazer. Através da intervenção televisiva, tem o poder de criar agenda política e até de definir os seus passos.

6. Como crítico, Marcelo consegue que, apesar do seu posicionamento ideológico e partidário, o seu comentário seja relevante para todos. Terá ainda ambição política? Se a tem, não se repercute nos comentários como nos de Dupont e Dupond na RTP1.

7. É pedagógico. A insistência na necessidade de o país ultrapassar atavismos e modernizar-se é disso um exemplo.

Mas Marcelo inscreve-se também em limitações desse atavismo: quando mencionou os telejornais de meia hora da Europa desenvolvida, mordeu a própria língua. De facto, em que país civilizado há telejornais de duas horas em que um comentador fale mais de meia hora seguida? Em que fale da Saúde e da Tchetchénia, do turismo e do jogo do Real Madrid? Em que cite o Código de Processo Penal e troque cachecóis do futebol com o jornalista? Eis o preço a pagar para se ter, num país com a mais alta iliteracia da Europa e numa TVI com o jornalismo mais próximo do tablóide, um comentador da mais alta qualidade e com êxito popular.