Eduardo
Cintra Torres
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Bom Povo de Olho Vivo! Eu Não Fugi! |
É por vós, olho-vivenses, que fico à beira de verter as primeiras lágrimas, agora que as câmaras de televisão já iniciaram os seus directos. Tudo de que me acusam é uma cabala! Ó país de cabalas! Ó cabalas que se abatem sobre nós, os conhecidos! Eu não cometi erro nenhum. Eu não sei de nada. A culpa dos meus erros é dos dicionários e prontuários. Eles é que estavam a par de tudo e não me informaram. A vós, povo olho-vivense, quero garantir que não cometi erros nem crimes, foi o PÚBLICO o culpado! Ele é que me deixou na ignorância do que se escondia no meu trabalho! Toda a cabala nada tem a ver comigo nem com o cargo para que me haveis eleito. A culpa é do partido em que me inscrevi para lá chegar. O partido é que sabia dos sacos azuis ou cor-de-rosa, eu não sabia de nada. Porque eu só quero servir o meu povo. Eu estou ao serviço do povo. Eu e o povo somos unha com carne: o povo dá a carne e eu deito-lhe a unha. Não precisamos cá de políticos, essa corja. Eu não sou político, sou um homem do povo! Porque não me deixam cumprir o meu mandato? Porque me querem impedir de fazer obra grande obrigando-me a explicar miudezas à justiça? Sim, eu vim de livre vontade. Apanhei o avião e aqui desembarquei, sem saber que a polícia me procurava. É falso que me tenham avisado de que ia ser detido. Falso! Eu não fugi! Quando aqui cheguei a Saint-Tropez, foi por acaso que tinha à minha espera o meu advogado, esse homem que no final desta conferência de imprensa me beijará a mão, a mão que lhe dá de comer. A vós, povo olho-vivense, povo amordaçado como no tempo do fascismo, vós a quem falo em directo para todos os telejornais, quero garantir que eu estou à disposição da justiça. Que venham cá falar comigo, e eu desmentirei as cabalas. Povo olho-vivense, sinto-me o primeiro exilado político desde o 25 de Abril. Eu não sou de ferro (e também já não sou do Ferro). Sou homem, sou pai e tenho uma tia com 114 anos que precisa de ir à consulta da Caixa! A vida que aqui levo... não é vida. Só penso em vós. Só penso em vós quando me sento na esplanada ao sol olhando o mar que me há-de levar de novo à nossa pátria! Garçon, um cafezinho e um copo de água! Quando penso em tudo o que podia estar fazendo na minha bela terra de Olho Vivo... até as lágrimas quase me voltam aos olhos, senhores cameramen. Este é o preço que estou a pagar pela minha liberdade: falar em directo para todo o Portugal! E a vós, telejornais do meu país, vós que me transmitis em directo sem me interromperdes, sem exercerdes a vossa prerrogativa de jornalismo, eu agradeço do coração. Vós prestais à propaganda da minha causa popular um serviço gratuito que agradeço. Vós permitis que eu fale durante 15 minutos sem interrupção, que eu leia um texto que o meu advogado rubricou, que eu mostre a minha cara quase a chorar, sem chegar a borrar a pintura, em grandes planos. Este tempo de antena vale ouro e eu garanto-vos, queridas televisões, que, se decidir não desaparecer nesta segunda pátria que me acolhe no exílio, voltarei a proporcionar-vos mais espectáculos -- porque o julgamento na praça pública é o único a que me sujeitarei sob a ditadura fascista! Agradeço também aos directores de informação dos vários canais por não cederem às pressões dos fascistas que dizem que este meu discurso em directo não é defensável segundo critérios jornalísticos. Outra cabala! Eu, que falo menos em directo do que o presidente da Federação Portuguesa de Futebol! E quero agradecer à RTP1 por ter posto no ar a entrevista que dei na véspera, mas que haveis apresentado depois do directo transmitido por todas as televisões. Parabéns pelo vosso verdadeiro exclusivo a posteriori! Eu sei, eu sei o que alguns pensam, que essa entrevista à RTP1 não tinha a mesma força que o directo. Mais uma cabala! Essa entrevista é uma espécie de directo, foi vivida como tal! E se não informámos disso abertamente os espectadores, foi para que eles pudessem viver com intensidade a força do directo, a força do meu directo! E se na entrevista lá tive de responder a algumas perguntas impertinentes (que horror, ter de responder a perguntas!), eu pude mesmo assim interromper a jornalista e falar por cima dela! Mas eu lá consegui enganá-la porque no final eu virei-me para a câmara e falei directamente para vós, meus queridos olho-vivenses, como se fosse a continuação do tempo de antena em directo. Quero que se saiba que sou contra a violência, mas esse tal Francis Assisco foi alvo da justa luta dos olho-vivenses. Ele ousou pisar o chão sagrado do nosso belo concelho! Sem ser de lá! Eu compreendo os homens de coragem do nosso concelho que responderam à provocação desse Francis Assisco dando-lhe o correctivo adequado. E mais porrada levará se lá voltar, porque o pacífico povo olho-vivense não tolera provocações. É preciso desmascarar as cabalas do chefe do Estado, dos deputados, do parlamento, dos chefes do meu partido, da oposição, desses políticos todos, dos tribunais, da polícia -- pois todos se conluiaram contra mim, o eleito do povo de Olho Vivo! E agora, deixai-me embargar um pouco a voz porque as câmaras continuam em directo sem me fazerem perguntas! Obrigado, televisões do meu Portugal amordaçado! Senhores cameramen, peço-vos para mostrardes em grande plano as minhas faces à beira das lágrimas! Portugueses: os directos das três televisões são generosos, e por isso vos repito: eu só vim para Saint-Tropez por não haver liberdade em Portugal e eu precisar de denunciar a cabala. Porque eu não fugi da justiça! Só peço à justiça do meu país que perceba que eu não posso sujeitar-me a ela! É isso que eu peço às televisões que me deixem dizer em directo! Eu só peço e agradeço os 90 minutos da RTP1! E peço a todas as televisões que ouçam as emoções, que "ouçam o que sentem" os olho-vivenses nos cafés, nas zonas ajardinadas e nas "retundas" da nossa terra! Estou a terminar. Vou sair por aquela porta sem responder a mais perguntas e sem câmaras atrás. Para qualquer assunto, para marcação de entrevistas (directos, de preferência), tratai com o meu advogado, o que me beijou a mão que lhe dá de comer. Bom povo olho-vivense! Eu não fugi! Eu apenas me deslocalizei! |