Eduardo Cintra Torres

A "T-shirt" do Juiz e Outros Temas Mediáticos


As sociedades atrasadas são rigorosas nas convenções, incluindo as do vestuário. Há dois meses, Manuel Alegre, o D. Quixote que vê fascismo onde outros com outros olhos vêem democracia, escandalizou-se com as fardas de militares em serviço nos telejornais. Agora, o director do PÚBLICO escandalizou-se com a indumentária do juiz Rui Teixeira.

Ele trabalha de "t-shirt"! De jeans! De ténis! A "pose desportiva" seria "incompatível" com "uma imagem de dignidade e severidade" (PÚBLICO, 29.05).

A "t-shirt" do juiz surgiu num "travelling" em que as câmaras seguiram Rui Teixeira à hora do almoço entre o restaurante e o tribunal. O movimento das câmaras era mais angustiante por ocorrer enquanto ouvíamos perguntas insistentes de jovens jornalistas sem preparação. Este longo plano é tecnicamente análogo ao da perseguição e agressão a Francisco Assis, sendo assimilado pelo espectador a uma perseguição.

Teixeira foi apanhado numa situação em que não tinha de assumir as convenções de traje de um juiz. Nem precisava de gravata, nem de toga. O dia estava quente. O juiz, para trabalhar melhor, estava vestido desportivamente. A "t-shirt" branca era impecável, muito mais agradável à vista do que os fatos horríveis de homens que surgem na TV em "pose" "digna" e "compatível". Aparece na televisão muita gente "importante" que parece vestir nos saldos das Lojas dos 300.

Eu prefiro a "t-shirt" do juiz. Tem muita semiótica. Ele usa toga no tribunal, fato para ir ao parlamento e "t-shirt" para ler documentos no gabinete. A "t-shirt" reforçou a confiança que eu tinha no juiz. Vi nela uma despreocupação perante o que possam dizer dele, vi liberdade de pensamento, vi uma prova de maturidade interior (e não de imaturidade), e de autoconfiança. Se estivesse sob pressão usaria fato e gravata. Espero que o juiz Teixeira possa nos próximos meses honrar a sua "t-shirt" branca.

Perseguido na rua, o juiz respondeu com ironia. Tem guardas-costas?, e ele com um gesto disse às câmaras para mostrarem a rua atrás de si. Está sob pressão dos "media"?, e ele apontou para as câmaras que o perseguiam como normalmente perseguem indiciados ou condenados. Dias depois tinha protecção policial, não por causa de "cabalas", mas para se proteger de câmaras e perguntas idiotas.

Foi de "t-shirt" (e blaser) que Herman José saiu do Coliseu, depois de despir fato e gravata em "pose compatível" com a dignidade da sua função de apresentador dos Globos de Ouro. À porta do Coliseu, perseguido pelas câmaras como o juiz, Herman terminava como começara a sua semana alucinante: falando para a TV por causa do caso da Casa Pia. As respostas desencontradas de Herman sobre os Globos a perguntas sobre a Casa Pia constituíram um grande momento de TV.

Com Herman, consumou-se o triângulo estratégico do nosso quotidiano actual: Casa Pia, TV, espectáculo. Quem durma sete horas, trabalhe sete horas e cuide de si em duas horas, ao contactar uma hora e meia com notícias da pedofilia na rádio e TV está 20 por cento do seu tempo livre a falar e a ouvir falar do caso. É brutal.

Até os jornalistas se fartam e conseguem atingir a maior contradição possível na profissão: os comentadores começaram agora a pedir às fontes e protagonistas do caso, não que falem, mas que se calem. Começaram a escrever que Souto Moura, o juiz e o advogado Pedro Namora falam demais. A acreditar em alguns comentaristas, Teixeira não poderia ter respondido às câmaras que o perseguiam e Souto Moura, igualmente pressionado, não deveria ter proferido o célebre "pode ser" que não passava de uma confirmação do que antes dissera, que todos podem ser chamados a depor em processos.

Os comentaristas alteraram a sua posição sobre o processo Casa Pia quando ele chegou a Herman José porque funcionam como os amigos de Carlos Cruz ou as irmãs de Ferreira Diniz: gostam de Herman José e não o querem longe dos ecrãs a diverti-los. Tal e qual como o discurso nos Globos de José Hermano Saraiva, o "entertainer" dos nossos 800 anos de História. Saraiva sabe o que é ser afastado das câmaras, como lhe aconteceu após o 25 de Abril.

Os comentadores mandaram calar Souto Moura, Rui Teixeira e até Namora e não referiram a presença persistente de Herman nos ecrãs. Este sabe que, dependendo a sua vida da TV e da complacência ou amizade do público (não pode perder audiências), precisava de se expor como ser humano, a relação com a mãe, etc, o que fez em declarações sucessivas para as câmaras durante a semana.

A máscara de actor deixava ver quão difícil era este novo papel saído da vida real - Herman falou para as câmaras com uma certa disponibilidade ao mesmo tempo que odiou fazê-lo. O zénite da relação Herman-TV ocorreu terça-feira quando, caso nunca visto, Herman chamou as televisões à porta do seu restaurante cerca da meia-noite. Disse-se pronto para tudo. Herman precisava de mostrar o restaurante, pois não sabia o que iria acontecer-lhe no DIAP dias mais tarde. Viveria a empresa sem ele? Ele, que ficando detido preventivamente, não poderia realizar o seu programa na SIC? As câmaras mostraram o restaurante, os comensais e o convívio.

Esta condição dupla pública-privada obriga Herman a uma gestão complicada de declarações, dado que não pode falar sobre o caso Casa Pia mas ao mesmo tempo precisa das câmaras. À saída do DIAP essa duplicidade exprimiu-se na sua única declaração: "Os Globos de Ouro são às 10!". Não pode falar mas precisa de aparecer. A televisão é a sua vida. Horas mais tarde, os seus amigos e pessoas que dele dependem levantaram-se para o receber nos Globos com uma ovação em que, como J. Pacheco Pereira escreveu, "foi o Herman arguido num processo-crime que recebeu as palmas". A vida privada confundida até ao miolo com a função pública. Foi, como referia uma reportagem da SIC, "uma longa semana em que o país inteiro (...) se deixou prender" por Herman. O "país inteiro" - isto é, a televisão, o processo Casa Pia, jornais e comentadores - ficaram "presos" a Herman, isto é, suspensos, reféns de cada nova declaração do apresentador ou passo da investigação.

Herman preparou-nos para o que poderia acontecer na sexta-feira: ou a detenção (e sabíamos ser necessário apoiá-lo indo ao seu restaurante) ou a chegada triunfal aos Globos, aplaudindo-o. O "país inteiro" respirou de alívio. Não é tolerável que os heróis mediáticos sejam acusados de crimes. Como se poderia "prender" (afastar das câmaras) um homem que há 28 anos "prende" o país com a magia da televisão?