Eduardo Cintra Torres

Casos de Polícia, Casos de Política


O caso Pedroso debateu-se na TV nas implicações políticas, como Ferro Rodrigues agora pretendia. Mas não é um caso de política. Só na TVI, onde Manuela Moura Guedes entrevistou em directo um rapaz que afirma ter sido violado por Paulo Pedroso. O grau e as funções que a pessoa ocupa não podem dominar o debate, isso é irrelevante para os crimes de que é acusado.

Os outros canais debateram pela via da alta política e esqueceram desta vez que o que está em causa não é o sistema político mas a eventual prática de crimes horrendos.

Francisco Assis agredido em Felgueiras. O processo Casa Pia à porta de um partido. E a Taça UEFA no Futebol Clube do Porto. As câmaras estiveram nos três palcos. A política também.

Desde logo pela presença populista de Luís Filipe Menezes nas TV, acicatando a comoção clubista contra o seu rival Rui Rio, e pela presença patética de Fernando Gomes, ex-presidente da Câmara a fingir que ainda o é, num frete que o achincalha aos pés do presidente do FCP.

Houve duas vitórias em Sevilha: a do FCP e a da RTP. A RTP 1 obteve audiência esmagadora, como é próprio destes "eventos" que caracterizam a TV generalista. As aspas são necessárias porque os canais generalistas amplificam até ao irracional a importância dos acontecimentos, transformando-os numa autocelebração de si mesmos. A final da UEFA, sendo importante para além do clube, foi um destes casos.

A "operação Sevilha" da RTP1 foi um dos mais notórios atentados ao conceito de serviço público desde a posse da nova administração. Não porque tenha transmitido o jogo. Não porque quisesse capitalizar alguma atenção.

Mas porque o canal público levou para Sevilha muito mais de 100 pessoas (a que preço?). Porque a emissão ficou totalmente infectada pelo evento, com dezenas de horas dedicadas ao tema. A RTP 1 rendeu-se ao futebol sem, todavia, nos informar devidamente sobre ele. Houve programas que se transferiram para Sevilha, como a Praça da Alegria, num entretenimento de TV comercial que fica muito mal no operador de serviço público.

Mas mais grave foi o "jornalismo" da RTP 1. As aspas justificam-se de novo porque a informação da RTP sobre a final da Taça UEFA não foi jornalismo, foi uma horrível manipulação de expectativas, uma montagem de efervescência colectiva em que não houve rigor informativo, investigação jornalística, nem o mínimo pingo de imparcialidade. Os blocos informativos da RTP 1 foram propaganda pura. Mesmo que seja uma propaganda "benigna" (porque festiva), não deixa de ser lamentável. O Telejornal transmitido do chavascal do estádio após o jogo simboliza o horrível serviço prestado. Notícias como as do processo da pedofilia foram lidas por um apresentador meio desatinado e com um ruído inaceitável para um telejornal sério, quanto mais do operador público.

Este caso revela o projecto que as direcções de Programas e de Informação estão impondo como "serviço público" no Canal 1 do Estado: o máximo de audiências, pisando se necessário as mais elementares regras do jornalismo e da filosofia própria do serviço público. A "operação Sevilha", autêntica rangelice sem Rangel, contraria gravemente os planos apresentados desde 2002 como filosofia de serviço público para a RTP 1.

Entretanto, RTP 1 e SIC Notícias prestaram bom serviço dando importância imediata à agressão de Francisco Assis em Felgueiras. A TV é muitas vezes acusada, com razão, por valorizar coisas sem importância só por ter imagens, mas neste caso a questão inverteu-se: as imagens tinham muito valor e, curiosamente, a imprensa do dia seguinte não deu ao caso a importância política de que ele se revestia. Só mais tarde o fez.

São imagens impressionantes porque as TV filmaram a agressão como testemunhas; porque as TV sabiam que a ida de Assis era importante e a GNR "não sabia"; porque os agressores estavam tão convencidos da justeza da sua violência que se deixaram filmar; porque a agressão foi filmada como um longo "travelling" de um filme que a polícia não estava a ver. Porque o país dos caciques e do populismo ficou à vista.

Há duas semanas, eu disse que achava incrível que o secretário-geral do PS, com a aprovação de todos os outros partidos, tivesse aconselhado a que o caso judicial da eventual corrupção de Fátima Felgueiras e da fuga para o Brasil não fosse politizado. Na verdade, está no cerne da política e do sistema político, como as imagens da agressão a Francisco Assis confirmaram.

A SIC Notícias debateu há meses o caso Felgueiras com Fátima Felgueiras, mas não o fez ainda sem ela. A SIC promoveu um interessante debate, bem moderado por Ricardo Costa e Sofia Pinto Coelho, mas ele foi inquinado pela presença do defensor brasileiro de Felgueiras, Paulo Ramalho. Ao contrário dos portugueses, o advogado brasileiro pode falar do processo. Cria-se uma situação estranha, porque as TV ouvem o advogado como se ele fosse comentador, quando ele é pago para defender a cliente, isto é, para dizer as palavras que melhor servirem a cliente. Isso não é comentário. A SIC fez bem em entrevistá-lo no Jornal da Noite, mas a sua presença no debate era escusada.

A politização deste caso foi recusada por Ferro Rodrigues, com o beneplácito do sistema partidário, mas quando o processo da pedofilia bateu à porta dum dirigente do PS foi o próprio Ferro Rodrigues que levou a politização ao excesso. Além de politizar, o PS fez o mesmo que a RTP e Sevilha: "emocionou" o caso Pedroso para as câmaras, apesar de já saber dele há 10 dias. O emocionismo vai chegando à política. Merece ser estudado. Voltamos às "demasias do emocionismo" que agora "infectam as camadas intelectuais", para citar Fialho de Almeida.

A discussão do caso Pedroso virou o bico ao prego do habitual discurso do partido envolvido e até de alguns telejornalistas sobre o funcionamento da justiça. As TV disseram que o país estava "em estado de choque", sem, todavia, apresentarem um único "vox populi", uma única sondagem, uma única prova de que o país estava em choque. Começa a ser intolerável que as TV generalistas falem abusiva e constantemente em nome de todos os portugueses, desde o "estado de choque do país" ao "os portugueses votaram" na Operação Triunfo ou Big Brother, ou ao "Portugal inteiro a vibrar" com a vitória do FCP, o que se sabe não ser verdade.

O caso Pedroso debateu-se na TV nas implicações políticas, como Ferro Rodrigues agora pretendia. Mas não é um caso de política. Só na TVI, onde Manuela Moura Guedes entrevistou em directo um rapaz que afirma ter sido violado por Paulo Pedroso, se colocou o caso como deve ser: o de uma pessoa qualquer que é acusada de certos crimes e de quem se presume a inocência até que etc. O grau e as funções que a pessoa ocupa não podem dominar o debate, isso é irrelevante para os crimes de que é acusado. Os outros canais debateram pela via da alta política e esqueceram desta vez que o que está em causa não é o sistema político mas a eventual prática de crimes horrendos. No mesmo dia, num concelho do Norte, um homem foi condenado por pedofilia. Os vários canais deram a notícia, mas não falaram de "um país em estado de choque".