Eduardo
Cintra Torres
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Acabar com a Publicidade na RTP1 |
Das ideias que avancei ou comentei sobre o enquadramento institucional, legal e de conteúdos de TV, há uma que já não defendo e que penso hoje ser lesiva para a televisão portuguesa em geral: a existência de publicidade na RTP1, que defendi em 2002 no Grupo de Trabalho, embora num modelo que não veio a ser adoptado no documento final. Hoje considero que a publicidade no canal generalista da RTP desvirtua o seu funcionamento, a sua filosofia de serviço público e não beneficia ninguém, nem mesmo os contribuintes que, aparentemente, só teriam a ganhar com uma menor transferência de dinheiro público para a empresa estatal. A publicidade obriga a RTP1 a funcionar em termos comerciais e a ser pensada em termos comerciais. Os seus responsáveis olham para o "share" como os donos e directores da SIC ou TVI. Precisam do máximo "share" para terem o máximo de publicidade, pois há objectivos económicos a atingir. Isso tem consequências perversas. Muitas vezes o objectivo de atingir o máximo "share" sobrepõe-se ao objectivo de fazer serviço público. Os responsáveis têm de arrumar os programas na grelha de acordo com perspectivas de "share". Por isso na semana passada chamei a atenção para o que sucedera com a programação de Gente Feliz com Lágrimas. O caso é ainda mais interessante porque, como me foi entretanto esclarecido, não houve intenção de prejudicar a série e até se pretendeu dar-lhe destaque. Mas foi o contrário que sucedeu, porque o sistema obriga a escolhas e essas escolhas são favoráveis aos tais programas destinados a recolher publicidade. Na RTP1 as pessoas vêem-se obrigadas a trabalhar para obter receitas e não para fazer bons programas de serviço público. Isso significa dar muitos dos melhores horários a programas que não são de serviço público e produzir esses programas com dinheiros públicos. Significa pensar "é preciso programas que tenham o máximo público" em vez de pensar "é preciso programas que tenham o máximo de qualidade e que por isso atrairão o público justo para esses programas". Enquanto houver publicidade, seja ela de 12, sete ou quatro minutos por hora, os gestores e programadores da TV pública estarão reféns da busca de receitas através de programas sem qualidades de serviço público e a empresa estará refém da filosofia da televisão comercial, o que muito perverte o espírito da sua missão. Os contribuintes ficarão mais bem servidos se a concessionária prestar um serviço adequado à sua missão. Assim, defendo que a ausência de publicidade, libertando a empresa para a finalidade da sua existência e anulando os constrangimentos dos seus responsáveis, será benéfica para os contribuintes-espectadores. Três argumentos são sempre invocados em favor da publicidade na RTP1. Um deles eu próprio defendi: o de que a publicidade é, também ela, um bom "programa" de televisão e anima o canal. Sim, mas não é um serviço que seja necessário prestar-se no operador público. Quem quiser anúncios, tem canais alternativos tal como sucede com outros géneros de programação. Segundo argumento: a publicidade obriga a RTP a um certo ritmo e evita o espírito de funcionalismo. Ora, nunca a existência de publicidade na RTP evitou na empresa todo o género de vícios do funcionalismo à antiga e das empresas mal geridas. A alternativa é a empresa ser bem gerida, bem dirigida e sem pesos mortos. O terceiro argumento tem sido defendido pelo mercado empresarial e publicitário. A ideia é esta: haver publicidade em apenas dois canais generalistas faria aumentar os preços, permitiria um cartel SIC-TVI para inflacionar preços, e, finalmente, significaria uma perda de oportunidade para se colocar certos anúncios junto de programas de qualidade da RTP1, os únicos vistos pela audiência específica a que pretendem chegar (A/B e C1). O argumento é forte, mas pretendo rebatê-lo. Sem publicidade na RTP1, o mercado funcionaria com dois canais como funcionava com três. Já funcionou, aliás, só com um. E a regulação interna do mercado e a do Estado através de um regulador forte (prometido para breve) impediriam a cartelização. Quanto à questão dos públicos-alvo, ela remete-nos de novo para a perversão do actual sistema, montado há dezenas de anos. Porque a existência de publicidade não leva a uma melhor programação mas a uma pior programação de serviço público. Além disso, havendo só publicidade na SIC e na TVI, poderá suceder o contrário do que se teme e, então, para terem publicidade destinada àqueles grupos de espectadores, os canais privados sejam obrigados a criar programas para a audiência A/B e C1, isto é, programas para grupos mais exigentes. Só assim poderiam recuperar um público que de outra forma continuará a fugir para o cabo e satélite e que passaria também a fugir para a RTP1. Isso seria favorável à melhor programação da SIC e da TVI. Além disso, este argumento parte do incrível pressuposto de que deve haver publicidade na RTP1 para benefício dos agentes económicos, agências publicitárias e intermediários - e não para benefício dos espectadores enquanto tal e enquanto contribuintes, pois são quem paga a maior fatia dos custos do serviço público. A RTP deve concentrar-se em exclusivo na prestação das missões que lhe estão confiadas, e que só parcialmente são cumpridas. Tomar a decisão de acabar com a publicidade na RTP1 será uma decisão corajosa e importantíssima para a reestruturação da empresa RTP e de toda a TV portuguesa e será a forma mais eficaz de proporcionar o fornecimento de um serviço público mais completo e livre das pressões do mercado. Esta altura de reestruturação é uma oportunidade dourada para encetar este passo e limitar a presença comercial no canal generalista do Estado a patrocínios institucionais de empresas, seguindo o rigoroso modelo norte-americano. E oportunidade poderá ser uma oportunidade única pois dificilmente se repetirá uma situação em que o poder esteja disposto a tomar decisões importantes e corajosas - algumas já encetadas - e em que o país esteja disposto a aceitar mudanças sem convulsões. Com o crescimento das alternativas de lazer e informação no computador, DVD, gravador digital, fora de casa e na própria TV, o panorama da TV generalista tem de mudar. Há dois caminhos: ou o das horrendas TVE1 e RAI Uno, que já vai sendo o da BBC, cada vez mais popularucha e comercial, ou um caminho diferente, totalmente empenhado em produzir programação de serviço ao público, destinado ao número máximo de espectadores que possam ter interesse em ver esses programas e não destinado ao número máximo de espectadores àquela hora. |