Eduardo Cintra Torres

Rir Até às Lágrimas


Quando se diz que a RTP1 "está melhor", que se diga em quê: quando a única série ficcional portuguesa que se inscreve realmente num conceito de serviço público - e produzida pela RTP! - é tratada abaixo de cão pela Direcção de Programas estamos perante um caminho grave

Morreu em Abril na Califórnia, aos 93 anos, uma das pessoas que mais influenciou a forma de vivermos a televisão: nos anos 50, Charles Douglass inventou a Laff Box, máquina que sobrepõe gargalhadas nas comédias e nos "talk-shows". A Laff Box ainda existe; hoje, reproduz centenas de sons produzidos pelo aparelho vocal.

Douglass criou a "máquina do riso" quando trabalhava como director técnico de "shows" em directo, para realçar ou substituir a reacção da audiência ao vivo. Mas logo se viu que a Laff Box não só emulava as reacções da audiência em estúdio como permitia prescindir-se da própria audiência.

As gargalhadas enlatadas tornaram-se uma convenção do meio televisivo que entrou no horizonte de expectativas do espectador. Os comentadores mais críticos da TV mantiveram muito tempo um registo amargo contra o riso enlatado, como se ele traísse o contrato mediático entre o meio e o espectador. Ora não há traição se o espectador conhece a convenção. É como a música num filme, que também não faz parte da "realidade" narrada.

Se a virmos como reflexo condicionado, o enlatado visa originar uma reacção animal. Mas pode também ver-se neste "rir porque o outro ri" um fenómeno de imitação muito humano e que é explorado por quantos estão nas artes performativas cómicas ao vivo.

O riso enlatado permitiu diminuir a barreira da distância estúdio/telespectador e o isolamento deste em casa. Ao ouvi-lo, o espectador não se limita a imitar (e portanto a sentir) o riso, faz mais, identifica-se com um colectivo humano. E transfere-se, é como se estivesse no estúdio, é como o impressionante momento final do filme "The Crowd", de King Vidor (1928), quando o plano se abre desde as caras dos protagonistas para uma multidão que ri na sala de espectáculos.

A Laff Box permite ainda o inesperado: fazer passar uma ideologia séria no âmbito da comédia ligeira. Foi o caso da série M*A*S*H*, passada na Guerra da Coreia e realizada durante a do Vietname. Agora, em DVD, pode ouvir-se sem gargalhadas. O texto colocava em causa a guerra (do Vietname, claro), mas, com a sobreposição das gargalhadas, o sentido crítico era absorvido sem que os espectadores (e eventuais censores) dessem por isso. Nem os apologistas da Laff Box poderiam prever esta sua insinuante capacidade de ajudar a passar ideias.

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A RTP anunciou Gente Feliz com Lágrimas para as terças-feiras. Mal - eu não dei pelo primeiro episódio. O segundo, por causa do futebol, não passou. Na quarta semana, a RTP1 fez pior: antecipou o episódio para a véspera e passou-o com duas horas de atraso. A série foi assassinada pelo próprio canal. Desprezou-se a única série de ficção da actual programação da RTP1 que se pode dizer de serviço público, por adaptar uma obra literária nacional. O mesmo desprezo não ocorreu nem ocorre com o entretenimento comercial da estação igual aos dos privados, como Operação Triunfo, Domingo É Domingo, ou Preço Certo. Ao contrário de Gente Feliz com Lágrimas, esses programas tem horas certas, horários privilegiados e promoções intermináveis.

Não é um detalhe. Há aqui um conceito, um projecto de canal generalista do Estado que é contrário ao do governo nas suas Novas Opções para o Audiovisual. O que o director de Programas da RTP, Luís Andrade, pretende aqui fazer é uma RAI Uno (cujo serviço público também é zero) de segunda categoria, gastando o dinheiro dos contribuintes em programas iguais ou piores que os da SIC ou da TVI.

Quando se diz que a RTP1 "está melhor", que se diga em quê: quando a única série ficcional portuguesa que se inscreve realmente num conceito de serviço público - e produzida pela RTP! - é tratada abaixo de cão pela Direcção de Programas estamos perante um caminho grave de utilização duma frequência nacional de TV, que pertence aos portugueses, para fazer má TV comercial. A linha de programação de Andrade é alarmante porque demonstra uma opção já em aplicação.

A RTP está numa excelente e urgente cura de emagrecimento de forma a reduzir os escandalosos regabofe e gestão ruinosa que ocorriam na empresa. Mas a grelha que vemos já revela o que se pretende fazer quando a casa estiver arrumada.

Prevejo as habituais "justificações" sobre Gente Feliz com Lágrimas: não tem audiências! Ora não tem porque foi mal programada de propósito. E mesmo que tivesse pouca audiência? Deve um programa de serviço público ser substituído por uma "chanchada" comercial? Quando falo com pessoas de direcção política e empresarial da RTP verifico uma terrível tendência para só falarem em "share" da RTP1. É a preocupação dominante. Se for esse o caminho, teremos em breve um falso canal "de serviço público" que poderia ser feito com dinheiros privados.

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Vêm da informação as surpresas da RTP, apesar de alguma "overdose" de programas informativos desinteressantes, e de o Jornal nocturno da RTP2 estar em roda livre (um bocejo sem fim).

O Planeta Azul apresentou uma modelar reportagem sobre o lince ibérico, "Linces Perdidos", realizada por Jacinto Godinho: bem informada, boa investigação, bom trabalho de campo em Portugal e Espanha, boa montagem, boa banda sonora. Gostei particularmente da total ausência de lirismo no texto, defeito tão típico do jornalismo televisivo. O texto "limitava-se" a informar, sem querer forçar-nos lágrimas com a mais que provável extinção do lince em território português.

A reportagem punha-nos como europeus e ocidentais perante a nossa irresponsabilidade na protecção da mais ameaçada espécie de felinos no mundo. Desta vez, não podemos dirigir palavras amargas sobre um crime ecológico aos governos africanos desinteressados da extinção dos elefantes ou rinocerontes, mas só a nós mesmos, enquanto comunidade, e aos nossos Estados. Aliás, se alguma coisa faltou à reportagem foi confrontar os Estados de Portugal e Espanha com o que estão e não estão a fazer para providenciar a salvação de uma espécie que só aos dois países compete.

Este excelente trabalho tinha outra notável qualidade. A locução de José Alberto Carvalho é a melhor que tenho ouvido em português em qualquer canal, generalista ou do cabo. Deixa a milhas a maior parte das restantes vozes. Carvalho tem boa voz, lê bem, normalmente, acentua nas sílabas certas, evita a irritante prosódia da retórica jornalística televisiva. E percebe-se tudo o que diz, coisa incrível de eu dizer mas que faço por não suceder com outros locutores. Carvalho é muito melhor na locução e no teleponto do que na apresentação do Telejornal (tem notórias incapacidades de improviso e entrevista), sendo aconselhável que a RTP utilize mais amiúde os seus fantásticos dotes de locutor.