Eduardo Cintra Torres

25 de Abril – Marca Registada


A quem pertence o passado? A quem pertence o 25 de Abril? Num admirável artigo sobre as mudanças em Portugal antes e após o golpe-revolução, o historiador Rui Ramos mostrou as oscilações e as contradições de um processo político-militar que não se pode definir como ou de "esquerda" ou de "direita" (Independente, 25/04).

O artigo explica a razão de as comemorações da data nas ruas estarem associadas à "esquerda": porque comemoram não apenas o 25 de Abril mas também o Verão Quente. O mesmo sucede no teledocumentário "Um Outro País", dos anos 90 (RTP2, 27/04), um dos mais conseguidos tecnicamente nos últimos anos na RTP (este em co-produção). A narrativa faz-se apenas pelas imagens e depoimentos, com montagem impecável - e tem uma ideia: inventar um certo Portugal em 1974/75, através de imagens captadas por profissionais estrangeiros, alguns entrevistados 25 anos depois.

As entrevistas revelam fotógrafos e cineastas politicamente empenhados. Alguns pertenciam a organizações políticas internacionalistas e estavam cá em missão. Dois deles usaram os serviços de uma agência de viagens "de esquerda" que organizava visitas guiadas à revolução portuguesa.

O teledocumentário permite compreender como o famoso caso da Herdade Torre Bela, originando um filme que é um dos mais espantosos documentos sobre o PREC, se transformou no paradigma da revolução: isso deveu-se à própria presença dos cineastas ali e da eficácia do seu trabalho, enviando material para o país de origem todas as semanas, numa acção de agit-prop complementar à realização do seu filme longo sobre o tema.

A forma como alguns falaram permitia ver como a sua posição se poderia, cinicamente, ver hoje assim: "Que giro que foi o vosso laboratório revolucionário; nós vínhamos das nossas estáveis democracias burguesas, sonhávamos com revoluções, fazíamos umas fotos de etnografia revolucionária e, quando estávamos cansados, voltávamos aos nossos empregos e sociedades operacionais." Não admira que uma fotógrafa que agora trabalha em moda tivesse, retrospectivamente, visto a revolução através da balda das fardas dos soldados em 1975, reveladora da desordem nas estruturas de poder do Exército e do país. O Verão Quente era uma moda.

As imagens mostradas são, em alguns casos, fantásticas: as mulheres de Baleizão, uma das quais revisitada em 1988 e 1998 e recordando a "liberdade descarada" de que usufruiu; o "looting de Bagdad" à maneira do PREC, isto é, com brandos costumes, revisitando-se as imagens sempre espantosas de camponeses da Torre Bela experimentando roupas ricas dos patrões, remexendo-lhes as gavetas com um misto de culpa, curiosidade e desejo, mas sem inveja; a reunião do MFA na Torre Bela, instigando (por escrito) os camponeses a criarem a sua própria legislação revolucionária, isto é, empurrando-os para a ocupação; o regresso dum fotógrafo a Pias; as entrevistas do realizador brasileiro Glauber Rocha nas ruas de Lisboa, logo após o 25 de Abril, puxando por respostas políticas rápidas de pessoas que ainda mal sabiam falar em liberdade e estavam apenas contentes.

O teledocumentário tem um grave defeito ideológico - mas que, para os seus autores, deverá ser uma fulcral qualidade: nem por um momento se distinguem a liberdade e o PREC, a instauração da liberdade das tentativas de a fazer desaparecer de novo. A ocupação da Torre Bela aparece como fazendo parte do 25 de Abril, o que não é verdade. Não há nenhum depoimento que diga: a liberdade venceu em Portugal, Portugal é hoje um país democrático. Estes profissionais estrangeiros dizem-nos que a "revolução" "foi uma festa linda, pá" (e não faltava a bela canção de Chico Buarque), mas que foi esmagada.

Portugal seria hoje, segundo o próprio título do teledocumentário, um outro e pior país. Talvez aqueles profissionais tenham a nostalgia dos tempos que gostaram de cá passar. Mas o teledocumentário não diz que o 25 de Abril se cumpriria, como cumpriu, na liberdade, no fim da guerra e no desenvolvimento, pelo que nunca se poderia cumprir no PREC.

A RTP1 apresentou outro documentário sobre o 25 de Abril, realizado este ano. Trabalho de pouco orçamento, "Aquele Abril" é fraco tecnicamente, com uma captação de som desastrosa e um grafismo de Feira da Ladra. A ideia de "Aquele Abril" foi a de levar um grupo de jovens (da Carlucci American International School of Lisbon? O que é isso?) a lugares míticos de 74 na companhia de Mário Soares: Caxias, Largo do Carmo, beira-rio (simbolizando o exílio) e Santa Apolónia. Nos intervalos das lições, minidepoimentos dos jovens dizem o que é para eles a democracia, etc., sob uns grafismos horrorosos. Apetece dizer: não foi para termos um serviço público de TV tão tosco que fizemos o 25 de Abril!

Experiente comunicador, Soares está à vontade nos relatos aos jovens e no "fair-play" com que responde a perguntas decoradas pelos jovenzinhos na véspera, quem sabe se na Escola Carlucci. O teledocumentário foi feito para ter esta forma: jovens nascidos depois de 1974 ouvem o pai da pátria em lugares simbólicos. Mas porque foi o documentário feito assim e não doutra forma? A resposta está no próprio documentário: Soares esteve preso em Caxias, esteve no exílio, apoiou o 25 de Abril e chegou a Santa Apolónia. Daí que todas as intervenções de Soares se tenham centrado na primeira pessoa. Este é o percurso narrativo, não do 25 de Abril, mas de Mário Soares.

O teledocumentário não acaba no Largo do Carmo ou no 1º de Maio, acaba com a chegada heróica de Soares a Portugal, em Santa Apolónia, como Lenin regressando da Suíça em 1917. "Aquele Abril" é um outro Abril, o de Soares. A identificação do 25 de Abril com a figura tutelar do PS, e uma das figuras tutelares da democracia, é evidente em todo o teledocumentário e fica expressa até nos detalhes. Quando termina a conversa à beira-mar, centrada no exílio de Soares, a câmara mostra uma dessas tábuas que as ondas do mar devolvem à costa. Nela estava escrita a palavra "voltarei". O singular, uma vez mais. Não "nós, exilados, voltaremos", mas "eu, Soares, voltarei". O teledocumentário tinha de terminar em Santa Apolónia.

Tal como "Um Outro País" criava a ilusão de que o "verdadeiro" 25 de Abril foi o PREC (e não o próprio 25 de Abril!), este novo teledocumentário da RTP diz que o 25 de Abril é Mário Soares. Ora nem isso é verdade nem o mito dicotómico Soares/democracia precisa de ser acrescentado.

Pode ser que um dia ainda se faça um documentário que mostre um outro 25 de Abril, com a sua "liberdade descarada" de todos os portugueses.