Eduardo
Cintra Torres
|
A Televisão "para Toda a Família" |
Porquê considerar certo programa bom para toda a família, para todas as famílias? E a que famílias do mundo real se destinam os programas? Os núcleos familiares unipessoais só de uma mulher com mais de 65 anos? Os núcleos familiares em que crianças vivem com os avós? As famílias do primeiro ou do segundo casamento? Quando eu era miúdo, éramos sete irmãos, os Cintras, e havia os Correias e os Pinto Leites (cinco), os Araújos (seis), os Cabrais (treze), mas também havia os Macaras (três), ou os Fiadeiros (dois, de um segundo casamento). Antes de a televisão entrar em nossa casa, na primeira metade da década de 60, víamo-la aos domingos à noite, quando se reunia a tribo nos meus avós: mais de 30 pessoas de três gerações a ver a Bonanza ou o Santo (mas não me lembro de alguma vez os meus pais e os filhos terem estado todos juntos a ver um programa "para toda a família"). Lynn Spigel, em "Television in the Family Circle" e "Make Room for TV", estudou a relação entre o televisor, a televisão e a família americana nos anos 50. A identificação TV-família era antropomórfica: "A televisão tornou-se um membro da família", escrevia a revista "House Beautiful", em 1951. Essa identificação resulta do próprio meio, destinado ao uso em casa, convidando, som e imagem, os espectadores a assistirem sentados, sem outra actividade. Sendo caseira, a programação era construída para ser apreciada por quem ocupava a grande maioria dos lares: a família nuclear, herdeira dos conceitos da era vitoriana. O tema criava, entretanto, uma contradição entre operadores de TV, favorecendo a ideia da programação familiar, e a indústria de televisores, interessada primeiro em impor o aparelho em todos os núcleos familiares, mas, depois, em estimular a compra de um segundo televisor, "dividindo" a família. Um fabricante chegou a desenvolver um televisor que num só ecrã dava dois canais em simultâneo, obrigando ao uso de óculos especiais para pai e mãe poderem usufruir desse feito tecnológico. O lugar-comum sobre a família não tem hoje base real. Os casais com filhos representam pouco mais de metade (56,7 por cento) dos núcleos familiares portugueses, diminuindo mais de 4 por cento numa década. As famílias monoparentais aumentaram 39,2 por cento, constituindo 11,5 por cento dos núcleos familiares. As casas com menos de três pessoas são quase metade do total. A proporção de casais com filhos no total de casais vai baixando, sendo hoje de cerca de 60 por cento. As famílias com apenas uma pessoa aumentaram mais de 40 por cento desde 1991. As famílias com cinco ou mais pessoas - frequentes na minha infância - diminuíram quase 30 por cento desde aquele ano. A percentagem de divorciados duplicou (dados do INE, 1991-2001). E, em 2002, por cada dois casamentos houve um divórcio (PÚBLICO, 13-04-03). Pode concluir-se que, se os programas se destinassem às famílias clássicas de pais e filhos, haveria cada vez menos audiência para programas "para toda a família". Em parte isso sucede com a queda da TV generalista. Além disso, é pouco frequente que toda a família queira ver o mesmo programa, razão que levou ao grande aumento do número de televisores nos lares. Normal é que dentro da família, pessoas de gerações e sexos diferentes façam escolhas diferentes. A oferta televisiva reproduz, na sua variedade, a tensão contraditória entre unidade e separação que há dentro das famílias. Se hoje a família já não é o que era dantes, a divulgação e embaratecimento da tecnologia e produção proporcionam uma variedade que contraria a lógica de programar "para toda a família". A audimetria não permite, infelizmente, saber quais, como e quanto as famílias vêem os programas: se em conjunto, se separadamente e se fazem escolhas diferentes. Os estudos universitários e dos operadores de TV indicam que aumenta o número dos que não se importam ou preferem uma vivência solitária da TV. Contudo, verifica-se que os "programas para toda a família" conseguem ainda obter importantes quotas de audiência, como o primeiro lugar de audiência de Ana e os 7 num horário muito concorrencial, em que enfrenta Herman SIC e Operação Triunfo (apontando ambos para o universo de "toda a família"). Isso será assim por duas razões. Primeiro, Ana e os 7 foi construído como um objecto ideológico meticuloso, o que é vulgar nesta indústria ficcional de grande audiência. O argumento, copiado de "Música no Coração", foi adaptado a valores hoje dominantes: o viúvo passou de militar a banqueiro; a preceptora de freira a "stripper"; a filha namoradeira passou do fascínio de um jovem bem-comportado para uma rebeldia muito típica dos nossos dias, que começa da porta para fora, isto é, não desarticula as relações familiares. Os sete miúdos mantêm-se superunidos, como os sete anões, e a "invasora" do lar deixou de ser a Branca de Neve, como nos Von Trapp, para ser uma Gata Borralheira. Completam as personagens a economista bruxa má que quer apoderar-se do viúvo príncipe encantado, os habituais criados fardados das telenovelas e o universo "outsider" do bar de "strip", de onde vem o proxeneta benigno da "stripper". A actualização tenta adaptar "Música no Coração" às realidades sociais de hoje, de forma a captar espectadores entre as crianças, os jovens e os adultos: "Toda a família". No papel principal, Alexandra Lencastre entusiasma crianças e papás, cabendo aos filhos mais velhos do viúvo entusiasmar os jovens, se bem que as cenas enjoativas com os sete filhos saidinhos do catálogo de roupas da C&A e perfilados como no filme de Robert Wise sejam mais do conto de fadas do que da "TV de realidade" de hoje. Aí reside, afinal, a segunda razão para o êxito de Ana e os 7, a mesma que explica o sucesso de Jóia de África. A série, do argumento aos "décors", das personagens ao guarda-roupa, é apenas um sonho, uma fantasia típica da televisão: finge tanto que é realista e próxima dos quotidianos de todos (de "todas as famílias") que até nos esquecemos que é um teleconto que poderia ser de animação. Curiosamente, os habituais separadores entre cenas nas "sitcoms", destinados a indicar mudança de tempo na narrativa, são, em Ana e os 7, feitos em animação digitalizada. A série fala para os sonhos de pessoas actuais. Pode já não haver hoje tantas famílias para que a TV tenha, como nos anos 50, programas com audiências consensuais, como a Bonanza e o Santo. Mas enquanto as famílias nucleares forem a principal forma de lares e enquanto houver uma saudade ou um desejo generalizados da família nuclear, haverá "sitcoms" "para toda a família". |