Eduardo
Cintra Torres
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A Difícil Linguagem das Imagens |
O filme fascina pela qualidade plástica, pela interpretação de Emil Jannings (o futuro professor do "Anjo Azul", de Steinberg), pela estrutura próxima da tragédia teatral sem todavia recorrer à sua primeira ferramenta, a palavra, e por construir uma narrativa fluida e auto-explicativa apenas através das imagens, da construção de cada plano e da montagem. "O Último dos Homens" é o avesso da televisão, meio dominado pela palavra, pelas narrativas orais e por pessoas a falar. Até em casos extremos de valorização da imagem, como a guerra, a TV é uma sucessão de palavras e de cabeças a falar. As reportagens enviadas pelos jornalistas enxertados em forças americanas no Iraque pareciam relatos radiofónicos em que os repórteres nem mesmo partilhavam a palavra com outras pessoas (só o fizeram em 20 por cento dos casos). E os repórteres em Bagdad mostraram mais a cara dos repórteres em Bagdad do que Bagdad. Falaram. O filme de Murnau é um mar de silêncio no meio televisivo. Pergunto-me quantos espectadores o suportarão sem ouvirem ninguém falar, sem lerem uma única legenda: é estar perante um televisor que não cumpre a sua missão televisiva! E, no entanto, "O Último dos Homens" tem uma estória para contar. O velho porteiro do Hotel Atlantic, orgulhoso do seu uniforme, perde o emprego e é posto a guardar as casas-de-banho. Ao perder a farda, perde o forro da dignidade. Prepara o suicídio. Até onde podem as imagens viver sem palavras? Quando pensamos em imagens, pensamos (com) palavras. As fotografias têm legendas. Os quadros têm nomes. Os primeiros filmes dos irmãos Lumière ou de Aurélio da Paz dos Reis - um único plano, câmara parada - precisam de título para os entendermos: "Saída dos Operários da Camisaria Confiança". A introdução da palavra explicativa é contemporânea da invenção da imagem em movimento. O cinema mudo ficcional introduziu as legendas interpoladas com diálogos, explicações da acção e conceitos abstractos. O filme de Murnau é uma gloriosa excepção. A narrativa visual foi construída sobre um engenhoso argumento de Carl Meyer e recorrendo a inovações técnicas no uso da câmara. Meyer rescreveu o argumento depois de se assegurar que era possível realizar determinados efeitos, em especial movimentos de câmara, que substituíssem as palavras. A intriga é uma tragédia de gente anónima, género que desde o século anterior era proposto pelos teóricos do teatro. Procura respeitar a regra das "três unidades" da tragédia (unidades de tempo, de acção e de lugar), mas é a acção, passada num curto intervalo de tempo e em dois espaços com forte relação com o personagem trágico (casa e trabalho), que torna desnecessárias as palavras explicativas. Segundo G. Sadoul, é por a unidade de acção ser "tão deliberadamente linear" que o filme não precisa de legendas. Assim, enquanto no teatro a acção da tragédia se faz pela palavra, este filme consegue aboli-la e fazer com que a acção trágica seja... acção, imagem, cinema. Marcel Carné, então jornalista e futuro realizador, viu assim a revolução técnica deste filme: "Colocada sobre um 'chariot', a câmara deslizava, levantava-se, planava, alinhava-se por toda a parte onde a intriga precisasse dela. Já não era congelada, mas participava na acção, tornava-se personagem do drama". Se hoje a televisão, com uma total mobilidade de meios, não consegue omitir a palavra é porque as imagens e as narrativas não são planeadas previamente, como o filme-tragédia de Murnau. Na televisão, "quando há uma mudança de local, de tempo ou ambos num contexto não-ficcional, ela é normalmente 'explicada' por palavras", escreve Paul Messaris. São raríssimas as narrativas noticiosas televisivas com mais que alguns segundos sem palavras. A TV quase nunca assume que quanto mais se mostra menos é preciso dizer, nunca assume literalmente as tais imagens que valem por mil palavras. A televisão não consegue mostrar uma imagem que valha mil palavras sem dizer essas mil palavras. Quando mostra imagens sem palavras, o próprio meio torna-as um objecto estranho, como sucede com as notícias do Euronews apresentadas "sem comentários": muitas são incompreensíveis se não se conhece os factos nelas relatados por outros meios (imprensa, etc.) - mas também é certo que, sem a "voz off", o valor das imagens se realça e elas ganham, na ausência da narrativa sobreposta, um quase-sentido estético, um falar sem falar: alcançam a transparência. É um caso em que um texto empobrecido não empobrece as imagens, para citar E. Prado Coelho. Todavia, esses módulos do Euronews não têm senão uma incipiente narrativa, se é que têm. Eu arriscaria até dizer que não são notícias no sentido em que o jornalismo não chega a intervir. São um regresso à magia das imagens em movimento, como em Lumière ou Paz dos Reis. Quase sempre as notícias televisivas são reduzidas ao texto narrativo falado: daí o recurso (insuportável nos canais portugueses) às expressões "tudo começou..." e "tudo aconteceu...". É preciso organizar a narrativa, e muito mais ainda no caso do directo, quando a narrativa se faz ao mesmo tempo que o acontecimento. As estórias convidam a palavra. Mesmo "O Último dos Homens" inclui legendas na cena final, quando - por imposição do produtor Erich Pommer ao argumentista - a tragédia se transforma em paródia alienante: numa intervenção "exterior" à tragédia, as legendas informam que os autores "tiveram pena" do pobre porteiro e optam pelo final feliz. O destino muda abruptamente com uma herança absurda e inesperada; com este final, o argumento introduz um "happy-end" "impossível" que contraria as três unidades, pelo que necessita absolutamente de palavras explicativas. Formada por segmentos, a TV tem de coser os vários eventos uns aos outros com palavras, necessárias também para dar sentido às imagens. Quase sempre as imagens coxeiam quando se quer criar a narrativa necessária à notícia, ao jornalismo. E pode ir-se mais longe, como Messaris: as imagens são "fontes de prazer estético, instrumentos de manipulação potencial, transmissoras de alguns tipos de informação \u2015 mas não são uma linguagem". Diz-se que vivemos numa sociedade mediática encharcados em imagens, mas cada imagem televisiva traz mil palavras no seu encalço, tantas delas inúteis. "O Último dos Homens" é, neste sentido, o último dos filmes. |