Eduardo Cintra Torres

A Guerra e a Crise da TV Generalista


A cobertura da guerra pelos canais generalistas portugueses surpreendeu pelo imenso tempo de emissão e pelos meios empenhados, superiores aos de outros países europeus, igualmente não envolvidos no conflito.

Sem querer debater aqui o lado positivo desse empenho para os espectadores, que os afasta dum isolacionismo informativo muito típico da pátria, este quadro não é, porém, suficiente para explicar a dose de guerra que os três canais generalistas nos ofereceram. De facto, a perspectiva em que se inscreve esta cobertura de guerra é a da crise profunda da TV generalista portuguesa, com a quebra na publicidade, mas também a diminuição, volatilidade e mobilidade das audiências.

A SIC tem milagrosamente mantido um segundo lugar de "share" com uma programação incaracterística e o mais barata possível em que não se destacam quaisquer programas. O modelo da TVI revela algum cansaço, provavelmente por erosão de audiências habituais e incapacidade de inventar para além dos modelos e "formatos" industriais adequados previamente a "targets", isto é alvos sócio-demográficos. E a RTP1, sem aplicar recursos financeiros em programas, apenas tem acentuado o lado mais populista da programação, dando peso ao "eixo do mal" Serenela-Isidro-Gabriel (SIG), confundindo pimba com serviço público. A isto junta-se o futebol, que garante picos de audiência.

Com programações miseráveis ou pobretanas, os canais generalistas agarram-se e ampliam o produto mais identitário que possuem: a informação. Assim, a guerra no Iraque foi uma benção para a televisão generalista portuguesa, principalmente para a SIC e a RTP1, mais vocacionadas para a informação - as audiências dos espaços de notícias na RTP1 e na SIC (com SIC/N) registaram subidas -, mas também para a TVI, que aumentou muito o tempo dedicado à informação.

A RTP, sendo pública, e portanto com a possibilidade de se dedicar mais à cobertura sem que os accionistas (os contribuintes) sintam as contas ao fim do ano, há meses que vinha empenhando esforços na informação sobre o Iraque, arrastando a SIC e depois a TVI a dedicarem igualmente muito tempo à guerra. A SIC aproveitou para pôr dois canais a dar a mesma coisa, a generalista e a SIC Notícias.

Nos instáveis anos televisivos que vivemos, a TV generalista deixou de ser um "mass media" como antigamente. Primeiro, porque as massas acabaram (só PCP é que finge que não sabe, para não ter um amanhã que chora). Segundo, porque a oferta televisiva de informação, entretenimento e até de programas ligeiramente educativos multiplicou-se diversas vezes com o cabo e satélite. As escolhas fragmentaram-se. Em consequência, os canais generalistas atraem menos gente, em especial entre os grupos mais dinâmicos da sociedade, aqueles para quem a maior parte da publicidade é feita.

Este quadro leva a um empobrecimento das programações a diversos níveis, nomeadamente na impossibilidade de se arriscar em programas seriados de médio ou longo termo, como a ficção. A SIC tem séries já feitas e pagas que não põe no ar porque isso significaria que contariam como custos em termos contabílisticos, sem garantirem mais que uma audiência incerta, geradora de uma publicidade menor do que os custos já pagos (é esquisito, mas é mesmo assim).

Proprietários e programadores preferem programas de géneros já testados - neste momento os "reality shows" e todo o tipo de "reality TV" -, sendo uma das razões a possibilidade de os eliminarem de antena se eles não resultarem. Os casos do Bombástico (SIC) e do Eu Confesso (TVI) exemplificam esta capacidade de retirar da grelha ou alterar programas apresentados como explosivos e de grande audiência que logo se revelam falhanços quer no conteúdo quer na audimetria. O mesmo sucedeu com o percurso de "expulsões" muito suspeito e final apressado da "Academia de Estrelas" (TVI).

Aliás, esta instabilidade do mercado e audiências provoca o fim do modelo de "grelhas". De facto, os programadores têm agora de acomodar as grelhas semanalmente. Note-se que esta crise da TV generalista pôs Portugal, nestes métodos de trabalho e gestão, na vanguarda. Nos Estados Unidos o acerto semanal de grelhas e a crescente substituição da ficção pela "TV de realidade" só se institucionalizou em 2003.

O empobrecimento da programação e as tentativas cada vez mais desesperadas de conquistar o maior número de espectadores (os pobres e os velhos) apenas provocam... um empobrecimento ainda maior. Má programação leva a menos espectadores e menos espectadores leva a programas piores e estes levam a menos espectadores... etc.

Este quadro só se altera com os chamados "eventos": veja-se a audiência da RTP1 em dias de futebol (que são muitos) e entende-se o que quero dizer. A televisão generalista só volta aos seus "bons velhos tempos" quando ocorre algum acontecimento que motiva um interesse generalizado da população: uma catástrofe, um grande acontecimento desportivo, uma noite eleitoral, um pontapé do Marco - ou uma guerra.

No conflito do Iraque, interveio naturalmente um empenho genuíno das estações para nos informarem o mais e melhor que lhes fosse possível. Para isso contribui o peso que a informação tem nas estruturas dos operadores, mas mais ainda o facto de os programas informativos estarem sempre entre os mais vistos. Contribuiu muitíssimo para a cobertura da guerra o seu carácter de "evento" televisivo: num caso destes, a TV generalista volta a ser a TV generalista "à antiga", congregando a maioria dos espectadores à volta do televisor-lareira. A informação sobre a guerra substitui com vantagem os outros programas, sem interesse, descaracterizados, pobrezinhos, vazios. A realidade da guerra é, durante algum tempo, mais emocionante do que a novela e as diversas operaçõeszinhas triunfos. Com vantagem para os operadores, pois não só têm mais espectadores como fazem muito tempo de televisão a um preço muito inferior ao dos formatos desses novos proxenetas do entretenimento, as empresas fornecedoras de "formatos internacionais".

O tempo de antena da guerra com os jornalistas da casa, transmitindo-se do estúdio da casa, com acesso às fontes habituais e recorrendo a dezenas e dezenas de horas de emissão com inúmeros especialistas à borla, civis (excepto alguns pagos) e fardados, sai mais barato do que as escolas e academias de estrelas de aviário. Mesmo contando com as despesas de envio de jornalistas para a região do Golfo, o tempo de satélite, videofone, dólares, meios técnicos, etc. Cobrir a guerra é mais barato que fazer "reality shows", cobrir a realidade é mais barato que a falsa realidade.

Tal como outros os "eventos", a guerra perderá tempo de antena não por razões político-militares mas quando não houver audiências que justifiquem as emissões e a despesa.