Eduardo Cintra Torres

Uma Nova Geração de Cómicos


Misturando anedotas e "stand-up comedy", "Levanta-te e Ri" (SIC) é um curioso projecto na área do humor televisivo. Apresentado ao vivo num palco de estúdio, como a TV dos anos 50, é uma sequência de prestações individuais de cómicos. Grande parte do humor apresentado inscreve-se no género revisteiro, responsável pelo coma profundo do humor inteligente nos "mass media". Fernando Rocha, vencedor dum concurso de anedotas na TVI (Ri-te, Ri-te), representa esse género antiquado mas ainda popular que submerge as veleidades de humor mais fino: ele é boçal, ordinário e grita as anedotas; mas, com genuíno jeito para a ordinarice, tem êxito popular. Deverá ser um dos nomes persistentes do entretenimento de massas nos próximos anos.

O apresentador do programa, Marco Horácio, conta as anedotas e vai dando o palco aos outros cómicos, sendo alguns herdeiros do "Malucos do Riso" e outros desconhecidos que pretendem surpreender-nos. Alguns conseguem, como Horácio, que se sai bem na tarefa de mestre de anti-cerimónias. Também me surpreendeu Aldo Lima, que vi num excelente momento de "stand-up comedy" imitando o toureio espanhol e português. Este humorista foi um dos poucos a utilizar o corpo, e bem, para criar humor, na tradição dos grandes criadores cómicos. O "sketch" revelava preparação e um humor ao mesmo tempo fino e aberto, o que não é fácil.

Fora da TV generalista, há o Cabaret da Coxa (SIC Radical), de Rui Unas e da sua minúscula equipa. O que conseguem é espantoso: num estúdio minúsculo, o programa dispõe do mais talentoso apresentador e de textos divertidos; criou um género marginal inteligente e com audiência fiel. O Cabaret da Coxa consegue o feito difícil de ter em sequência bandas de garagem, os pimbas mais rascas, bons textos de humor, um bom apresentador e entrevistador - e sobre tudo isto um registo de ironia que nos diz que nada daquilo é para levar a sério nem literalmente. Por exemplo, os músicos são tão maus que temos de rir e aceitar naquele âmbito. O mesmo com a linguagem ordinária e os cenários de fancaria. Barato e manhoso, o Cabaret da Coxa é o programa mais divertido da TV temática.

Foi também no canal mais improvável do cabo, o NTV, que surgiu um novo talento da TV portuguesa: Francisco Menezes. Começou por fazer N-Cromos, que não acompanhei com a atenção que mereceria, agora que sei do que é capaz. Os "cromos" que vi não me entusiasmaram. Foram provavelmente um tirocínio para o que se seguiria na NTV, O Desterrado.

O programa apresentava um narrador tripeiro, desterrado como o da obra de Soares dos Reis - mas este na capital dos "mouros", Lisboa. Francisco Menezes como que estava dos dois lados da câmara: todos os personagens, por ele representados, falavam para a câmara, que era os olhos do narrador, o qual falava em voz off. O modelo do programa era engenhoso mas funcionava bem, não só pelos textos como pela capacidade do actor em se metamorfosear. Ver Lisboa pelos olhos e pelo pensamento de um tripeiro resultou divertido. O humor era feliz porque conseguia mostrar reais fraquezas dos "mouros" e em simultâneo mostrar Lisboa segundo um certo barro humano portuense bairrista e provinciano. Verdadeiro humor, com mais do que um nível de leitura (tal como, no género talk-show, o Cabaret da Coxa).

O Desterrado simbolizou com felicidade o salto de Francisco Menezes para Lisboa: o seu programa seguinte foi Portugal FM, na RTP1. A TV do Estado só o terá comprado porque, como os programas que referi antes, é muito barato. E, afinal, é por ser barato que revela por completo as capacidades de Menezes e equipa.

Portugal FM retoma um género de programa de humor já bastante batido e que se vem revelando dos de mais fácil concretização pelas gerações de criativos mais jovens: a TV a gozar com a TV. Era o caso do Programa da Maria, de Maria Rueff, estreado no período mais caótico da SIC e agora em repetição na SIC Radical, incluindo episódios que não chegaram a ir para o ar. Em Portugal FM o leit-motif é a presença de Francisco Menezes em todos os episódios (todos simulando TV) e o facto de ele falar sempre para a câmara, naturalizando as personagens e a relação com o espectador.

Os novos actores de teatro e TV têm um grande à-vontade com a câmara de TV. Menezes parece que nasceu a falar com ela, quer faça de pastor stressado, de dirigente do Benfica em conferência de imprensa, de apresentador de TV incompetente que diz sempre "isto só em Portugal", de polícia que bate nos que aparentam violar os "bons costumes", de americano mormon ou de Telma Eloísa, camionista viril.

Tal como Aldo Lima, Menezes usa o corpo para criar as personagens. Tem também uma grande flexibilidade verbal e vocal. O talento não é de papel e resiste às provas públicas: o "sketch" em que fez de peixeira Vitória, com a colaboração das peixeiras do Bolhão, revelou o à-vontade.

Como os N-Cromos e O Desterrado, o programa é "one man show": Menezes cria mais de uma dezena de personagens, uns melhores que outros, mas com grande capacidade criativa, sendo os textos razoavelmente divertidos, com um estilo diferente do habitual em Lisboa e uma ingenuidade salutar que fazia falta (será por serem textos ao estilo do Porto?).

A falta de orçamento aguçou o engenho: o recurso ao género "TV goza TV" fornece a lógica à ligação entre os "sketches"; o estúdiozeco está bem aproveitado para os excelentes números de karaoke, ou para a participação do apresentador que entra e sai do directo sempre em falso e com mensagens SMS politicamente incorrectas a correr em baixo.

Menezes chegou à TV generalista num percurso de programas tão baratos que poderiam ser rascas se não usufruissem do seu talento e de um humor ousado e inteligente (só o humor inteligente pode agradar a todo o tipo de espectadores). Ao contrário do que dizem pessoas do meio televisivo, para quem Menezes "tem potencial", o Desterrado e o Portugal FM revelam mais do que potencial, pois são já a sua concretização. Mas também é verdade que há um caminho a percorrer e a cimentar. Tomara que ele não desperdice o talento, não deixe que o êxito lhe suba à cabeça nem se lance em projectos "abrangentes" que matam o humor de qualidade.

Os vários programas que referi têm em comum serem baratos. A falta de meios fez revelar talentos genuínos, com capacidades nada tecnológicas, apenas humanas (o corpo, a representação, o texto). Eis, finalmente, um aspecto positivo da crise da TV generalista: "back to basics", o regresso a qualidades autênticas de talento.

Depois de Herman José há mais de 20 anos, Maria Rueff tinha sido a única nova presença de qualidade no humor em televisão. Era muito peso em tão poucos ombros. Finalmente, em 2003, quando tanta gente se queixa que "não há nada para ver na televisão", a televisão portuguesa vai voltando a fazer-nos rir.