Eduardo Cintra Torres

A Guerra na Televisão (2)


Marketing exagerado: Carlos Fino estava no ar exactamente à hora em que o primeiro míssil caiu em Bagdad. Foi sorte, mas o ditado diz que a sorte protege os audazes. É um jornalista experiente, com muita reportagem na mochila. Em contacto de Bagdad exactamente no mesmo minuto estava apenas - e pelo telefone - Peter Arnett, com a NBC. O marketing de José Rodrigues dos Santos e da RTP a respeito da reportagem de Carlos Fino excedeu um normal orgulho. Também a referência críptica de Rodrigues dos Santos no final duma emissão de que afinal a história se repete foi também exagerada e um pouco infantil, pois ele falava de si mesmo, pelo facto de, mais uma vez, estar no ar quando começa a guerra.

Rodrigues dos Santos devia saber que o primeiro de hoje é o segundo de amanhã. E foi o que sucedeu na sexta-feira. Mas, apesar de entrar no ar após a SIC, a RTP exibiu uma frase de marketing quase como se fosse a única a mostrar as explosões em Bagdad, quando havia centenas de canais a fazê-lo em todo o mundo (uns 10 visíveis em Portugal, no cabo). A concorrência petulante fica mal a todas as organizações, mas em especial num serviço do Estado.

As imagens do videofone: um jornalista sentado num quarto de hotel. A cidade por trás. Luz natural da noite urbana. O jornalista fala para a câmara em tom de voz coloquial e o relato é profissional e desapaixonado. Tudo isto parece normal mas - numa metamorfose excêntrica - resulta muito dramático porque é o contrário da normal construção do discurso jornalístico audiovisual. Habitualmente, o jornalista fala em pose, de pé, para uma câmara com iluminação, coloca a voz em registo «de jornalista», está na rua e não num quarto de hotel (mostrando menos da cidade do que da janela!). As imagens e sons do videofone na escuridão dum quarto de hotel resultam sinistras e angustiantes. Depois, cai o míssil. O jornalista vira-se para a notícia, de costas para nós, a câmara treme, o videofone envia-nos sombras e manchas esverdeadas, mal se notando o local do impacto. Com os movimentos da câmara, as imagens falham, depois recuperam. Ao longe, a coluna de fumo.

Horas mais tarde, vimos noutros canais a mesma cena filmada por câmaras transmitindo por satélite imagens impecáveis, sem a presença de jornalista, sem escuridão nem tremuras, e sem o directo. Eram as imagens de guerra, as mesmas explosões, mas o dramatismo não estava lá.

Convencional, mas precisa e mediática: Em dois dias de mísseis e combates, o Iraque noticiou um morto e 12 feridos civis - dez vezes menos que as vítimas mortais das estradas portuguesas no mesmo período. A guerra no Iraque, que não podia ser mais convencional, é tecnicamente perfeita: "quanto mais as armas se aperfeiçoam, mais o número de perdas diminui", escrevia o jornal parisiense "Le Temps" em 1914. Será que as bombas estão mais certeiras porque as comunicações audiovisuais das democracias também estão?

Até onde vai a relação entre ambos os poderes? Em 1916, o psicólogo Gustave Le Bon, analisando a política informativa da 1ª Guerra Mundial, falava do "método do silêncio", "imposto à imprensa" por causa da "influência que poderia ter exercido a opinião pública sobre o desenvolvimento das operações". Nesta guerra, o objectivo é o mesmo, mas obtém-se pelo método da sobre-informação.

Para contrabalançar as imagens dos mísseis caindo sobre Bagdad, os exércitos aliados enxertam equipas de reportagem no seu interior ("embedded journalists") que acompanham os movimentos militares a partir de dentro, o que sucedeu, aliás, em 1914-18, a primeira guerra do tempo dos "mass media". E há outra semelhança: ao informarem uma avançada militar que se previa sem grandes percalços, as equipas dão exactamente a informação que os seus anfitriões esperavam que dessem, dando um novo sentido à "entente cordial" referida por Loureiro dos Santos.

Mas os jornalistas que vão à guerra dentro dos tanques vêem muito pouco, como referia um repórter inglês para distanciar o jornalismo britânico do mais "embedded" jornalismo norte-americano. E esse "ver pouco" não é só literal, é simbólico: só o comando político e militar sabe o que se passa. Foi o que disse Donald Rumsfeld na sexta-feira: cada repórter mostra-nos apenas "uma fatia" da guerra. O espectador, para "ver" o máximo que pode da guerra, tem de fazer com inteligência e precisão de cronómetro o que já costuma fazer: zapping.

Também no lado iraquiano há mudanças. Peter Arnett há 12 anos estava quase sozinho em Bagdad e a ditadura não queria mais ninguém. Hoje há mais de uma centena de jornalistas ocidentais em Bagdad. Talvez porque o regime esperasse um bombardeamento gigante, com muitas vítimas para mostrar às câmaras ocidentais. O sofrimento dos inocentes não comove Saddam, mas comove a opinião pública ocidental. Para o regime iraquiano, a presença dos jornalistas estrangeiros não visava informar o povo iraquiano mas comover o Ocidente: só que a precisão dos mísseis impediu que se verificassem as "milhares de crianças mortas" vaticinadas por Carlos Carvalhas e dos "milhões" de mortos previstos por Mário Soares, o que levou a ditadura iraquiana a reprimir os jornalistas ocidentais a partir de sexta-feira.

Do lado americano pudemos ver num dia mais imagens de lançamentos de mísseis de navios e movimentações no deserto do que em toda a guerra de 1991. Com ou sem presença constante no campo de batalha, a TV deixou de ser apenas a caixa registadora dos acontecimentos: tornou-se uma "poderosíssima arma, pois tem todas as características de arma, como produtor de projécteis que atingem diariamente aquele que se pretende vencer", como refere Loureiro dos Santos. Mas julgo que a presença da TV não está garantida em todos as guerras futuras: dependerá em primeiro lugar da natureza do conflito e dos regimes e do papel desempenhado pelos beligerantes.

Balanço português: o espectador precisa de picar os três canais generalistas para obter o melhor da informação e do comentário. Mas o esforço de três canais tem sido louvável, com repórteres em Bagdad e outros pontos do Médio Oriente, com inúmeras intervenções, o recrutamento de bons especialistas civis e militares, com uma apreciável quantidade de informação e uma boa qualidade dos comentadores especialistas. As muitas horas de emissão não só são úteis mas também desejadas, como os índices de audiência mostram. Os jornalistas sabem, tal como os militares e os políticos nestas alturas, que, num dia futuro, as pessoas poderão dizer deles «this was their finest hour». Mas é desagradável que sejam eles mesmos a dizê-lo a todo o instante.