Eduardo Cintra Torres

A Guerra na Televisão (1)


Três presidentes: na primeira noite da guerra, vimos pela RTP um momento invulgar: os minutos anteriores à declaração de George W. Bush, colocados indevidamente no ar pelos serviços da Casa Branca. O presidente ia treinando o tom e o teleponto, a senhora da maquilhagem dava um toque à laca e cortava um cabelo mais rebelde. Bush falava para a câmara, olhava os espectadores nos olhos, como um jornalista de televisão. Ninguém imagina o ditador do Iraque nestes preparos. Horas depois, quando Saddam Hussein apareceu no ecrã, nem sequer sabíamos se era ele ou se era um sósia, lendo um manuscrito cheio de adjectivos e orações - e sem olhar para a câmara.

As duas declarações revelavam a diferença abissal da natureza dos respectivos regimes políticos. Mas faltava um terceiro tipo de declaração: o do "nem sim nem não mas talvez". Como que pedindo desculpa de ter de tomar posição e de interromper a emissão na RTP1 dum jogo de futebol entre equipas estrangeiras, Jorge Sampaio falou no intervalo do Newcastle-Barcelona. Ao terminar o "nim", Sampaio tentou sair de cena pela sua direita, mas, vendo que passava por trás da repórter da RTP em Belém, voltou para trás e saiu em passo curto pela esquerda como se estivesse a perturbar o cenário da TV do Estado. O discurso "nim" durou 5 minutos e não disturbou nem o jogo nem os compromissos comerciais da RTP.

As emoções dos jornalistas: durante décadas, a TV só nos dava as emoções dos heróis, ora da ficção, ora da sociedade. Depois, deu as do povo. Desde há pouco anos, começou a dar as emoções dos jornalistas. A "pergunta mais idiota", como lhe chamou Peter Jenkins no 11 de Setembro, faz-se agora também aos colegas jornalistas: "o que sentes?" Nem mesmo um profissional experiente lhe escapa, como Henrique Garcia, que a colocou ao repórter da TVI no Kuwait e depois ao repórter em Bagdad numa notável falta momentânea de bom profissionalismo.

Os jornalistas tornam-se heróis dos jornalistas. Carlos Fino e Paulo Camacho, e mais tarde Nuno Carvalho (TVI), tornaram-se alvo da atenção dos colegas por estarem em Bagdad. Camacho, com o seu habitual profissionalismo humilde e cavalheiro, rejeitou menções de heroísmo, enquanto Carlos Fino, num registo semelhante, pediu desculpa por fazer um relato mais pessoal, aliás mais do que aceitável. Mas Lisboa quer mais, quer emoções, para que o espectador sinta o que sente o jornalista e, através dele, o que sente o povo de Bagdad. As emoções percebem-se melhor que as imagens do videofone.

De costas para a notícia: os repórteres falam para a câmara. Mas esta, para nos dar conta ao mesmo tempo do cenário de guerra, está virada para a cidade ou para os carros de combate no deserto. Quer dizer, os repórteres estão de costas para a notícia. É bizarro, mas todos aceitamos. Em Castelo de Paiva, várias vezes os repórteres perderam eventos das buscas no Douro por estarem de costas para o rio, falando para o olho de vidro da câmara.

Em Bagdad, Fino e Camacho, fechados em quartos de hotéis, desligam as luzes para que as câmaras consigam mostrar alguma coisa de Bagdad à noite. Quando os mísseis caem, eles viram-se de costas para nós e olham pela janela. Vêem o mesmo que nós, disse Camacho. E, vendo o espectáculo pela moldura duma janela de quarto de hotel, sentem-se numa posição "imoral", como referiu Fino. Que significa este sentir-se numa posição imoral? A culpa. É a mesma que sentem os espectadores por assistirem à distância ao eventual sofrimento de outros.

Os especialistas: por mais que sejam as imagens de satélite, é preciso entender o que se passa. Como em tantos eventos de tempos passados, as imagens pouco explicam. São "irracionais", fragmentos de uma longa história que se passa em muitos lugares. A maior parte das imagens que vemos são pontos de interrogação.

Sem a criação da narrativa da guerra pelos jornalistas (e pelos poderes que passam as informações), os espectadores quase nada entenderiam, apesar da grande abundância de imagens fortes que a guerra tem proporcionado. Daí que a guerra precise de muitas"talking heads", cabeças falantes. O início do conflito revelou nos três operadores generalistas uma corrida aos especialistas militares, de estratégia e relações internacionais. A transferência de Nuno Rogeiro da RTP para a SIC ocorreu logo no primeiro dia - e começou de forma desastrada e ridícula, com o especialista rodeando-se de miniaturas de soldados de chumbo, aviõezinhos e até um porta-aviões que lhe deve ter dado uma trabalheira a montar. A SIC viu-se livre dos brinquedos e os comentários reconquistaram a compostura, insistindo de início mais no comentário político do Bloco de Esquerda (Louçã, Rosas, Portas) do que no comentário de especialistas militares e universitários.

As emissões da TVI foram, entre a cimeira das Lajes e o início das hostilidades, de uma pobreza confrangedora, a que só a entrada de Henrique Garcia pôs termo. O défice de comentário estratégico habitual sentiu-se ao começar a guerra (a SIC e a RTP têm há anos comentadores militares). Notou-se também uma alteração editorial: dum isolacionismo e anti-americanismo típicos da opinião pública portuguesa, a TVI tornou-se depois favorável à intervenção no Iraque. Para isso contribuiu a posterior presença dos especialistas.

Nos três canais destacaram-se os militares, não só na reserva mas também no activo, de que as inúmeras fardas nos estúdios deram prova. As Forças Armadas revelaram um muito tardio mas crescente interesse das escolas e cursos portugueses de oficiais na comunicação pública, verificando-se hoje o que o general Loureiro dos Santos chama (no livro "A Idade Imperial") a "entente cordial ultimamente estabelecida entre jornalistas e militares". Deu-se mais um pequeno passo para o profissionalismo e democratização da comunicação em Portugal.

Ao contrário do que se poderia esperar há uns anos, quando os militares eram demasiado prudentes e pouco experientes na comunicação pública, as explicações dos militares foram desta vez uma lufada de ar fresco, pela competência e conhecimentos que transmitiram como pelo elegante enfrentar das perguntas tipo Nostradamus dos jornalistas em estúdio, que querem sempre saber o futuro da guerra, precisamente a única coisa que à distância não se pode saber. "Eu não tenho uma bola de cristal", disse Fuzeta da Ponte no Jornal da Noite.

Juntamente com os militares, destacaram-se alguns competentes universitários, entre os quais Rogeiro, que recuperou jovialmente da cena dos brinquedos de plástico. O ambiente de guerra permitiu que militares e especialistas em estratégia e relações internacionais se sobrepusessem aos comentadores políticos, permitindo ver-se nestes, aliás, alguma superficialidade no género de intervenções em comparação com o comentário sólido das outras "talking heads". (Continua amanhã).