Eduardo Cintra Torres

O Complexo de Fabrício e a Guerra na Televisão (3)


Aos 17 anos, Fabrício, aventureiro e idealista, deixa a Itália para se juntar ao exército de Napoleão, reunido após o seu fulgurante regresso da ilha de Elba. Findo um percurso de ingénuo entre pícaros, Fabrício chega a Waterloo com dois objectivos: combater e ver o imperador. Nos dias de combate, desenquadrado, sem saber o que se passa, Fabrício vagueia pelos campos da batalha, consegue matar um inimigo e vê passar um grupo de marechais onde poderia estar Napoleão - mas o cansaço e a aguardente deixam-no incerto de ter avistado o imperador.

Fabrício esteve sempre na batalha, combateu, viu o marechal Ney e talvez Napoleão, mas não sabe o que aconteceu em Waterloo. "O seu maior desgosto era não ter perguntado ao cabo Aubry: assisti eu realmente a uma batalha?" Parecia-lhe que sim, e teria ficado feliz se tivesse tido a certeza. Por isso pergunta depois a um sargento: "Mas é isto uma verdadeira batalha?" O outro responde apenas: "Um bocado."

A batalha de Waterloo no ponto de vista de um rapaz errante, na "Cartuxa de Parma" de Stendhal, é uma página suprema da literatura que tem servido a teóricos da comunicação para exemplificar a fragilidade em que um informador se encontra qualquer que seja a situação, simples ou complexa.

Na guerra do Iraque verifica-se com grande intensidade este fenómeno a que podemos chamar complexo de Fabrício: os repórteres enxertados nas tropas da coligação vêem um episódio da linha avançada e de combates - apenas um episódio. E também o jornalista em Bagdad, Amã, Washington ou Lisboa não tem uma visão global.

Como Fabrício, nenhum vê totalmente a batalha. Muito menos a guerra. A estreia de reportagens em directo da linha da frente acrescentou o complexo de Fabrício ao ponto de criar um conflito no estado-maior do Qatar, onde jornalistas começaram a pressionar os generais para fornecerem um "quadro geral", um "overall picture": over+all, acima de tudo, por cima de todas as cabeças. A pressão é justa, pois se os chefes militares quiseram jornalistas na linha de frente, porque não haveriam de dar o quadro geral? Obviamente, não podem: isso seria informar o adversário.

Os militares americanos permitiram que se enxarcasse o Ocidente de informações parcelares da guerra, pelas razões apontadas por Pacheco Pereira (27/03) e para evitar que todas as imagens viessem de Bagdad, como em 1991. Agora vemos o resultado, afinal óbvio: a informação acrescida clama por mais informação ainda. Os relatos dos repórteres nas frentes de batalha por diversas vezes parecem não encaixar nas generalidades optimistas do tipo "tudo segue de acordo com os planos". Falta realmente o "overall picture", que na "Cartuxa de Parma" só Stendhal detém e de que na guerra só os chefes políticos e militares se aproximam. Mas, por obra da milagrosa qualidade e quantidade da informação em democracia, verifica-se, entretanto, que um espectador acompanhando regularmente as muitas emissões nacionais e internacionais sobre a guerra sabe mais do conflito do que a maior parte dos jornalistas envolvidos na feitura das notícias. De telecomando na mão, o espectador é um Stendhal atento que vê muitos Fabrícios procurando saber o que se passa no campo de batalha.

Episódios generalizados: o complexo de Fabrício surge nas sedes dos vários canais portugueses quando tendem a transformar pequenos episódios no quadro geral da guerra. Basta mudar de canal para se perceber que não é assim. Empolar mini-episódios desinforma da mesma maneira que empolar informações de vitórias sem provas factuais.

A falta de preparação das redacções portuguesas em assuntos militares e estratégicos leva a desnecessários mal-entendidos que prejudicam a informação. Por exemplo, quando a coligação disse que Baçorá e Umm-Kasr estavam "seguras", era fácil entender-se que a palavra era usada no sentido estratégico, militar: as duas cidades estavam neutralizadas militarmente, não podiam participar no assalto às forças de ataque da coligação nem na defesa de Bagdad.

O empolamento dado a mini-episódios, do lado iraquiano ou do lado da coligação, coloca a informação de um canal no ponto de vista de Fabrício: vêem uma árvore mas não a floresta, julgam que viram uma batalha onde ocorreu uma escaramuça, enquanto ignoram a batalha de que não há imagens. A melhor forma de evitar cair no complexo de Fabrício seria parar para pensar antes de pôr no ar uma "notícia que nos acaba de chegar": mas parar para pensar é uma manobra que não se usa com frequência nas redacções dos media audiovisuais e é, até, considerada um crime de lesa-jornalismo. Nas redacções audiovisuais o que interessa é ser o primeiro, não ser o melhor.

Abuso mediático de menores: uma das mais repugnantes orientações da informação televisiva em tempo de guerra é a utilização melodramática de crianças. Não me refiro à mostração dos horrores da guerra que atingem os mais frágeis de nós. Refiro-me ao explícito abuso mediático de menores. Ocorre nas zonas de guerra e bem longe, no conforto da velha Europa.

De Bagdad, chegou-nos uma reportagem num hospital, onde entraram civis vítimas de um míssil americano. Sentado numa cama está um miúdo de uns quatro anos. Tem a cabeça ligada. Chora desalmadamente. Porquê? Pelo terror da explosão? Pelas dores do ligeiro ferimento? Pela falta da mãe? Não sabemos. Mas o que vemos é que não há ali nenhum familiar, nenhum enfermeiro, nenhum médico para sossegar a criança. Porque é preciso que o miúdo chore: em volta dele, a poucos centímetros da cama, estão dez fotógrafos e repórteres de TV armados de câmaras assustadoras. Deles, vemos apenas a parte de baixo do corpo e os equipamentos em volta da cintura, tal e qual como Spielberg representou os adultos em "ET".

Em Portugal, esta pedofilia mediática tem outros contornos: televisões e rádios descobriram repentinamente que podem obter melodrama entrevistando crianças. Lá vão os media a correr para as escolas ouvir o que já sabem que vão ouvir: os miúdos não gostam de guerra.

Gestão de expectativas: desde o início das hostilidades que os chefes políticos e militares da coligação disseram que a campanha não seria curta e que a estratégia militar seria muito flexível, podendo mudar dia a dia. Apesar disto, ao terceiro dia, os canais de TV começaram a dizer que, "ao contrário do que se esperava" e "contrariando as expectativas", a guerra estava a durar "mais do que o previsto" e que a coligação estava a sofrer enormes desaires.

Terá havido fontes fornecendo expectativas? Nenhuma notícia ou jornalista nos disse qual a fonte que "esperava" uma guerra de poucos dias. Terão as expectativas exageradas sido criadas nas redacções? Em breve havia portugueses a dizer o mesmo em inquéritos de rua, criando-se a famosa "espiral de silêncio" de que falam os estudos: mesmo que as pessoas não acreditem, dizem o que acham que é a opinião da maioria. Em tempo de guerra a opinião pública é volátil. Eu desconfio de quem fala em nome dela. (Continua amanhã)