Eduardo Cintra Torres

Lusitano Caixão


Lusitana Paixão não é Eça, é Moita Flores. E é uma telenovela, cuja estrutura, semelhante à novela de folhetim do século XIX, nada tem a ver com a forma do romance, usada por Eça. A bem dizer, é apenas mais uma telenovela, com diálogos frouxos ou só utilitários, personagens cor-de-rosa e uma concretização técnica menos que mediana

O "ABC de Queirós", realizado por Sérgio Tréfaut (SIC Notícias), concretizou uma ideia de Maria Filomena Mónica: juntar na mesma análise três das primeiras obras de Eça: “O Crime do Padre (A)maro”, “O Primo (B)asílio” e “A (C)apital”.

A ideia-base dava um bom documentário, mas o resultado não brilha. O trabalho gira em torno de depoimentos, sendo o de Mónica o principal, e de imagens ilustrativas das três obras de Eça. No caso de "O Crime", o realizador reconstituiu duas cenas do romance: o primeiro contacto de Amaro com a venialidade do clero de Leiria num jantar e o despertar da sua atracção por Amélia. Ilustrando "A Capital!" mostraram-se extractos da adaptação teatral dos anos 60, na versão da RTP, e no caso de "O Primo Basílio", Tréfaut pôde recorrer às várias adaptações cinematográficas portuguesas (1922 e 1959), mexicana (1934) e argentina (1944) e ainda a uma mini-série brasileira de TV (1992). Esta abundância permitiu a Tréfaut o melhor momento do documentário: a justaposição de cinco versões da mesma cena do romance, quando pela primeira vez a criada chantageia a patroa: a força da prosa chega intacta ao ecrã desde o cinema mudo (com as excelentes Ângela Pinto como criada e Amélia Rey Colaço como Luísa) até à adaptação televisiva.

Mas um documentário não se constrói por imagens de arquivo, antes pela sua própria narrativa, que aqui era dada pelos depoimentos. O realizador optou por contrastar impecáveis imagens de época com grandes planos dos depoentes sob um efeito de desfocagem que os tornava quase grotescos e certamente incomodativos. O documentário não era o lugar certo para inventar bizantinices formais.

A agravar, os depoimentos revelaram uma indecisão da linha ideológica do documentário: tratava-se de um trabalho de orientação sociológica ou literária? Biográfica ou de análise das obras? Histórica ou freudiana? A escolha dos depoentes, deixando de fora os principais especialistas literários de Eça, inclinou-se francamente para uma abordagem pelo lado freudo-histórico-sociológico da biografia, isto é, pelo lado de Maria Filomena Mónica.

Os erros de Mónica no documentário são demasiado ingénuos para quem publicou uma biografia de Eça: disse que Amaro comete o crime de "parricídio", quando infanticida é que ele foi; disse que não existe original de "A Capital!", quando seria mais correcto dizer que não há versão definitiva do autor mas há importantes fragmentos manuscritos e impressos que permitem uma versão moderna, como a cuidada edição crítica de Luiz Fagundes Duarte (INCM, 1992); e definiu "A Capital!" como um romance de aprendizagem - quando a experiência de vícios e escapadelas lisboetas de um homem feito ("Artur tinha então vinte e três anos" e já passara em Coimbra pela universidade e pelos prostíbulos) não é exactamente de molde a enquadrar-se naquele género ficcional.

A opção freudo-histórico-sociológica — natural sendo Filomena co-autora do documentário — não permitiu ao trabalho "dar o salto" para uma compreensão do que significa Eça para o leitor actual. As duas especialistas em literatura ouvidas (Eunice Cabral e Maria Lúcia Lepecki) puseram o documentário à beira desse entendimento. Cabral disse que Eça não sobrevive hoje por ser observador e crítico da sua época, um jornalista, mas por ser um grande escritor. E Lepecki considerou "negativo" que se desenterre constantemente Eça para explicar o presente: "Por mais que o Eça tenha dito bem a sua época, deixemos-lhe a tranquilidade de ter dito a sua época."

Lepecki tem razão em criticar essa contagiosa doença lusitana de transformar em actual o retrato por Eça do seu tempo. Esse anacronismo rouba-o à sua época para "explicar" todo o nosso século XX. A abusiva actualização de Eça esconde a razão apontada por Eunice Cabral que torna esse mesmo anacronismo possível: a qualidade literária das obras de Eça. O anacronismo faz-se por ser Eça um grande escritor mas esconde o grande escritor.

O anacronismo está na base do aproveitamento por Francisco Moita Flores de personagens e de intrigas romanescas criadas por Eça de Queirós, principalmente em "Os Maias", para criar o esqueleto da telenovela Lusitana Paixão (RTP1). O entusiasmo de Moita Flores por Eça deu fruto satisfatório na série baseada em "O Conde de Abranhos". Além de pôr a bom uso o seu faro para grandes histórias, o argumentista sentiu-se atraído pela possibilidade de, através das personagens e da trama do "Conde", criticar a política e os políticos actuais.

Sendo uma série de época, o "Abranhos" colocava as personagens no tempo em que elas existiram ficcionalmente (a Regeneração, o rotativismo). Assim, se ocorresse, o anacronismo era do espectador que, vendo as trocas e baldrocas da política na segunda metade do século XIX, comentasse: "Olha!, 'eles' já eram assim naquela altura!"

Todavia, não é isso que sucede com Lusitana Paixão (que nome vazio!), em que as personagens de Eça são arrancadas ao tempo da narrativa original e transpostas para o século XXI. A força do romance trágico de Eça é tal que a verosimilhança da sua humanidade aguenta a passagem — mas o anacronismo está lá: as personagens (Carlos e o avô, João da Ega, Vilaça, o deputado, etc.) parecem ter chegado a Lisboa numa máquina do tempo. Por ser uma telenovela, a situação transposta de "Os Maias" parece ainda mais anacrónica, um daqueles sonhos para os pobres que a NBP faz para a TVI. O barro que Eça usou para a sua arte, aliás sublinhado em "ABC de Queirós", ou seja, o retrato do Portugal que ele conheceu, fica despropositado em Lusitana Paixão, porque fora do contexto original sem que o de substituição faça sentido, como parece que faz o padre Amaro no México actual.

Em resumo, em Lusitana Paixão há tão-só uma utilização legítima (não é plágio, como o da lusitana atrevidota) de situações e personagens dum autor maior do nosso cânone literário, tão legítima como a inspiração em personagens e situações arquetipais do Antigo Testamento ou das Mil e Uma Noites. Mas Lusitana Paixão não é Eça, é Moita Flores. E é uma telenovela, cuja estrutura, semelhante à novela de folhetim do século XIX, nada tem a ver com a forma do romance, usada por Eça. A bem dizer, é apenas mais uma telenovela, com diálogos frouxos ou só utilitários, personagens cor-de-rosa e uma concretização técnica menos que mediana. É tempo de resguardar Eça, de deixá-lo descansar, de evitar que ele retrate um tempo que não foi o seu - é tempo de deixar que Eça seja "apenas" o grande escritor.