Eduardo Cintra Torres

Relatório & Contas


TV Saddam: Os ditadores não dão boa televisão. A entrevista de Dan Rather, da CBS, a Saddam Hussein foi uma seca monumental que a CBS e por cá a SIC tiveram de dourar com intervenções adicionais e algum movimento, nem que fosse de automóveis nas ruas de Bagdad.

A SIC fez um debate em que Nuno Rogeiro notou e bem que, do ponto de vista jornalístico, Dan Rather, o já quase mítico apresentador de notícias da CBS (ele anda a trabalhar para ver se retiramos o "quase") foi um desastre: não fez perguntas importantes que era preciso fazer ao dirigente iraquiano. A proposta de Saddam de um debate com Bush é um desaforo, vindo de um ditador que nunca aparece em público nem mesmo na TV senão em situações encenadas, que preparou a entrevista ao milímetro e controlou as imagens que saíram.

Os temas das notícias: o estudo da Marktest sobre os telejornais de 2002 nos quatro canais generalistas é um útil instrumento de análise para jornalistas, profissionais de TV, académicos e políticos. A estatística revela que, ao contrário de lugares-comuns muito divulgados sobre o seu alinhamento, os telejornais abordam os «temas importantes» da actualidade pela mesma ordem de grandeza do conjunto da imprensa: política, desporto, economia, justiça e saúde. A importância dada ao desporto é exagerada se tivermos em conta de que é só futebol e que a maior parte do tempo não se fala sequer de futebol mas das falcatruas e aspectos laterais (divórcios, operações ao joelho, árbitros, bilheteira, etc.).

O noticiário internacional representa 21,1 por cento das notícias, contra 64,8 por cento da actualidade nacional: a relação não é nada má e contraria outro lugar-comum, sobre a inexistência de noticiário internacional nos telejornais. Além disso, os casos mais noticiados foram também os de maior destaque na imprensa: Mundial de Futebol, Prestige, Moderna e Casa Pia. O tempo dedicado aos partidos é proporcional, na ordem, à votação nas eleições de Março de 2002.

Dado que a política se faz hoje mais de personalidades que de partidos ou ideias, é importante verificar a lista dos mais vistos nos noticiários em 2002: Paulo Portas, líder do terceiro partido, teve mais tempo de antena (caso Moderna?) do que Ferro Rodrigues; Carvalhas, líder do quarto partido, está em nono lugar nas personalidades televisivas.

A estatística confirma o que tenho escrito sobre o dirigente do Bloco de Esquerda Francisco Louçã, ou "Ecrã": ele tem mais tempo de TV do que Carvalhas, apesar de menos de metade da expressão eleitoral. Isto diz bastante da incapacidade do PCP de ter políticas que tenham interesse noticioso mas também da capacidade de Louçã, que é apenas um dos líderes das organizações clandestinas que formam o Bloco, em fazer o que for preciso para aparecer.

Esta inversão de importância entre Carvalhas e Louçã revela-se contrária ao interesse dos eleitores-espectadores: é que, aparecendo Louçã mais tempo no ecrã, Carvalhas é mesmo assim mais visto do que o dirigente do BE, isto é, Carvalhas tem mais audiência em menos tempo de visibilidade.

Na lista das dez pessoas mais vistas na TV, Mário Jardel é o único desportista: o facto demonstra o estado do nosso futebol e da nossa informação desportiva, porque Jardel em 2002 praticamente não jogou.

O estudo revela ainda que a estratégia de aumentar noticiários sem justificação informativa tem o agrado de muitos espectadores: o Jornal Nacional da TVI, que emitiu 17 por cento do tempo total dos noticiários dos quatro canais foi mais visto do que qualquer outro noticiário, tendo um “share” de 27 por cento do total dos telejornais.

Imagens violentas: nenhum dos habituais medidómetros da violência na TV chamou a atenção para as imagens na RTP, SIC e TVI da chegada do atleta Carlos Calado ao aeroporto de Lisboa no domingo 23/02 após o acidente que lhe matou a mulher e dois filhos. As câmaras não tiveram piedade: mostraram a dor infinita. Nem o atleta nem os acompanhantes estavam em condições de controlar o acesso das câmaras numa circunstância da mais pura privacidade. As TVs, incluindo a pública, portaram-se como abutres nojentos e nem por um segundo lhes passou pela cabeça, antes ou depois do acidente, mostrar Calado e os outros atletas em prova na Madeira. No mesmo dia, provavelmente, mostraram treinos de futebol ou declarações de enfermeiros dos "grandes" da "super" Liga.

Assim também eu compro: os "empresários do Norte" que as notícias dão como interessados em lançar um canal de TV do Porto podem ter a garganta dourada, mas não têm ouro na gaveta. Esta coisa de «empresários do Norte» começa a fazer-me um bocado de comichão. Primeiro propuseram à RTP a compra do NTV por... um euro. Se é assim, eu dobro a oferta! Depois, propuseram «comprá-lo» por 200 mil contos, mas a parte vendedora tinha de garantir em troca publicidade no valor de... 200 mil contos. Neste caso eu também dobro a oferta. Passaram de um euro a zero euros!

O grande porta-voz do Norte, Luís Filipe Menezes, declarou depois que a terceira proposta seria irrecusável: foi tão irrecusável que não chegou a ser feita. Não contente com isso, Menezes declarou que até gostaria de ser director desse canal... Fiquei arrepiado: os meus concidadãos portugueses do Grande Porto não merecem este segundo Carlos Magno. Já chega de TV narcisista, incompetente, megalómana. Por este caminho, o Grande Porto só dificilmente terá um canal e provará a sua capacidade empresarial.

Humor de grande categoria: a RTP2 apresenta aos sábados duas séries de humor britânicas de extraordinária qualidade: The Office e The League of Gentlemen. The Office é um pseudo-teledocumentário realizado num escritório onde todos são incompetentes ou inúteis e fingem ou julgam o contrário. Se o ambiente é extremamente britânico, a qualidade é universal. Este humor corrosivo é brutal: a série é imune às gargalhadas fáceis e às enlatadas.

Quanto a League of Gentlemen, prossegue nesta 2ª série o mais violento retrato humorístico da sociedade rural jamais visto, sem a mínima concessão ao secular estilo português de ruralismo idílico. As personagens são perfeitas, completas. A população da pequena aldeia de ("you'll never leave") Royston Vasey é criada por apenas quatro actores, que representam dezenas de papéis, em caracterizações notáveis.

A mega-humilhação: a novidade da gala da TVI foi a humilhação a que as "estrelas" do canal foram sujeitas e se prestaram. Não sei quantas e quais imagens ficaram de fora da montagem final, mas o que vi foi uma experiência desagradável e acabrunhante. Hoje as pessoas dispõem-se a tudo para serem os "conhecidos" que são. A galeria de humilhações (Paes do Amaral e Manuel Moura Guedes, naturalmente, não foram humilhados) é apenas o começo do que a TV de "realidade" nos promete: a humilhação dos participantes chegará em força aos nossos ecrãs e transformar-se-á num dos principais "valores" transmitidos pelos "reality-shows".