Eduardo Cintra Torres

Operação Comercial


Ao escolher o Acontece, o ministro omitiu exemplos bem mais interessantes para o debate, como a Operação Triunfo, programa que tem sido enjoativamente apresentado pela RTP como «serviço público». Por causa do seu conceito errado, este, sim, é um custo que deve debater-se. A Operação Triunfo é tão cara que sairia mais barato à RTP pagar uma viagem à volta da Lua a cada um dos seus espectadores.

Uma das mais inquietantes tarefas a que muitos portugueses se dedicam é a de rotular programas de TV como sendo ou não sendo de «serviço público». Eis uma questão hamletiana que enquanto dura dá azo a tragédias várias em programas que esbanjam dinheiro público - público, disso é que não há dúvida. Enquanto a sociedade debate o tal ser ou não ser, lá se vai o nosso dinheiro num preço incerto em euros.

O Acontece é ou não serviço público? A discussão foi levantada pela referência de Morais Sarmento aos seus custos. As virgens culturais ficaram ofendidas com o que disse o ministro. Em Portugal, quando se ouve alguém criticar a cultura puxa-se logo da pistola. E nessa autodefesa se juntam a esquerda esclerolítica e a direita complexada (o que, perdoem-me alguns, reúne 99 por cento do Portugal que escreve comentários).

É certo que o ministro foi infeliz na referência porque a) estabeleceu, sem explicar, uma relação entre o custo de um serviço público e os seus usufrutuários, b) exemplificou, sem explicar, com um programa da área cultural, isto é, das falsas virgens ofendidas, daí resultando que c) ficou no ar a ideia de que «serviço público» é que o se paga a si mesmo por ter mais audiência. Mas o comentário do ministro também serviu para reacender o útil debate sobre o «serviço público».

Ao isolar a relação custo total/espectador de um programa, o ministro enveredou por um caminho perigoso: pela mesma lógica, o Itinerário Principal para Bragança não deveria ter sido construído porque serve muito menos pessoas que uma eventual auto-estrada de oito vias entre Lisboa e Sintra.

É precisamente o facto de um magazine cultural ser previsivelmente «caro» na relação com o número de espectadores que o torna mais importante no âmbito do «serviço público» do que outros programas. Já disse e repito: quando um programa qualquer é concebido para o «máximo público» dá-se o primeiro passo para se afastar esse programa do serviço público. Não se pode fugir disto. Enquanto isto não for compreendido, a RTP1 continuará a ser um canal em competição com os privados ao nível da programação, como se queixava com razão Herman José na noite em que o seu programa ficou ensanduichado entre o «serviço público» da Operação Triunfo e o irmão gémeo desse programa na TVI, a Academia de Famosos.

Ao singularizar o Acontece, Morais Sarmento fez crer que a sua opção para os canais do Estado é de programas que obtenham uma audiência máxima (qual?) que justifique a despesa. Em resultado da sua justificável preocupação com o estado caótico (e criminoso?) em que encontrou as contas e a gestão da RTP, o ministro inverteu o que é serviço público: considerou-o como o que é visto por um grande número de pessoas e não o que prossegue um conceito correcto de serviço ao público e tem qualidades técnicas de forma e conteúdo, atraindo por isso o número justo de pessoas.

O Acontece tem um conceito de serviço público (magazine cultural) mas é uma sofrível concretização de um bom conceito. Só isso deveria ser debatido politicamente e não o seu custo, que é um problema de gestão da RTP. No Independente (21.02), o mais brilhante crítico da nova geração, Pedro Mexia, já estabeleceu 10 razões que afastam a concretização do programa do seu bom conceito. Subscrevo-as.

Ao escolher o Acontece, o ministro omitiu exemplos bem mais interessantes para o debate, como a Operação Triunfo, programa que tem sido enjoativamente apresentado pela RTP como «serviço público». Por causa do seu conceito errado, este, sim, é um custo que deve debater-se. A Operação Triunfo é tão cara que sairia mais barato à RTP pagar uma viagem à volta da Lua a cada um dos seus espectadores.

A Operação Triunfo é uma operação comercial agressiva. Chamar-lhe serviço público é uma fraude. É um "reality show" como outros, ao qual a RTP retirou, com uma ridícula intervenção de Catarina Furtado na primeira «gala», as cenas de cama e de casa de banho - depois de nos mostrar as camas e as casas de banho. No seu conceito «restrito» de privacidade, o programa «apenas» nos mostra todas as outras cenas da vida privada dos concorrentes, das conversas às refeições. Quando começarem as lágrimas, que fazem parte da operação comercial, as câmaras de «serviço público» lá estarão com lentes de aproximação: há secreções corporais que são «serviço público» (o suor e as lágrimas), e outras que são «serviço privado» (o chichi e as restantes).

A Operação Triunfo é um aviário de cantores pop: dizer que premeia o «esforço» é uma treta, porque três meses à borla numa escola de instalações luxuosíssimas (pagas pelos contribuintes) com a garantia de uma hiper-exposição nos "media" não é exactamente o conceito que a sociedade deveria ter de esforço para se chegar a uma carreira honesta. Na vida «cá fora» são precisos seis a dez anos para se chegar a médico, advogado, arquitecto, pianista, cantor lírico ou economista - e custa muito.

Mesmo no âmbito da arte e entretenimento, a Operação Triunfo só serve para lançar mais uns jovens vocalistas pop num meio se calhar já saturado: não promove artistas de nenhum outro ramo, nem mesmo da música. A Operação Triunfo é um ritual de passagem de jovens (nem todos) inexperientes a estrelas do universo pop; é um Festival da Canção que em vez de durar três horas dura três meses.

Este programa premeia a empresa espanhola que o vendeu à RTP; premiará a RTP se conseguir recuperar o seu pornográfico custo, que dava para fazer muitas dezenas de horas de boa TV de referência; premeia a indústria pop, que não é exactamente um conceito de «serviço público»; e premeia concorrentes com mais horas de exposição televisiva à borla em três meses do que qualquer político, desportista ou artista.

A Operação Triunfo foi herdada da anterior por esta administração, mas, à falta de explicações, surge como um pilar do que se pensa deverá ser o canal generalista do Estado. O comentário de Morais Sarmento, centrado num programa que, mesmo a precisar de reforma profunda, é de serviço público, aponta para uma concordância com o modelo Operação Triunfo da RTP1. Arons de Carvalho, o ideólogo do anterior governo para a TV, deve estar a roer-se de inveja: por este caminho, a actual RTP1 está a transformar-se no canal «popular de qualidade» que ele gostaria de ter implementado - um canal comercial mascarado de serviço público.