Eduardo
Cintra Torres
|
O Juiz Decide |
Eu a pedir à ficção, na semana passada, para voltar a surpreender-me e eis que a realidade, essa bruta, avassalou o quotidiano e como um furacão varreu dos ecrãs qualquer veleidade de série, filme ou novela. Com a prisão preventiva de Carlos Cruz, uma das mais conhecidas figuras da história da TV portuguesa, a quem chamavam "o senhor televisão", a realidade surpreende mais do que a ficção. As almas inquietam-se: ao contrário do costume, quem está a tratar dos mitos é a realidade e não a ficção. O processo informativo deste caso ímpar tem aspectos positivos: em dezenas de horas de notícias, reportagens, debates e entrevistas, retirou o Estado da sua letargia, obrigou a polícia e a justiça a trabalharem as suspeitas e obrigou a TV a ensinar como funciona a justiça. Obrigou-a a formar os telespectadores, obrigou o sistema judicial a sair dum exagerado secretismo e, inversamente, levou os advogados, sempre pedindo o fim do segredo de justiça, à autocensura por oito dias, uma espécie de defeso. Através da interacção com a sociedade, este caso ensinou todo o sistema judicial a comportar-se um bocadinho melhor de acordo com a comunicação em democracia. A televisão, onde começou a denúncia da pedofilia, está empenhada no tema até ao miolo, por todos os lados, em todas as frequências. Cruz, locutor, apresentador, entrevistador, "entertainer", actor de publicidade, autor, director, produtor, "medium" do Euro 2004 e empresário, tornou-se agora notícia por causa do "mundo lá fora" e não por causa do "mundo lá dentro do ecrã". Ele, que trabalhou nos três operadores, que num só dia de Novembro protestou a sua inocência em directo nos três telejornais. Carlos Cruz estava rescindindo com a SIC, invocando que o incomodavam os programas que devia apresentar: um chama-se Escândalos e Boatos; o outro chama-se O Crime Não Compensa. Dias depois, Cruz está preso preventivamente, e os títulos dos dois programas tornam-se um convite fácil à ironia sobre "ficção real". De repente, a realidade real tornou irrelevantes esses e outros programas de "TV realidade", quer dizer, realidade ficcionada. As almas inquietam-se por causa dum desequilíbrio que tem surgido muito raramente na nossa vida mediatizada: o epicentro do equilíbrio mental da sociedade passou desta vez do ecrã para a mesa do juiz. De cada nova revelação nos ecrãs - em louváveis trabalhos de investigação - sabemos que não é o ecrã que resolverá o caso, mas o tribunal. Este caso quebrou o ecrã de protecção da "TV de realidade". *** De crimes por julgar a crimes julgados. A TVI apresenta-os num daqueles programas que dá mais polémica que audiência: Eu Confesso. è direita da apresentadora estão ex-condenados contando as suas histórias, à esquerda sentam-se as vítimas ou familiares. Há um painel de criminologistas, psis-disto e psis-daquilo. E há um "júri" de cidadãos elegendo a culpa ou inocência "social" do antigo condenado. O programa é estranhíssimo, porque a única pessoa ali presente realmente interessante é o antigo criminoso: é o único que nos traz alguma coisa de novo; que permite aos espectadores ajudar a compreender como funciona a mente humana, como qualquer pessoa pode cometer um crime. O resto é "talk-show" barato, é Bombástico a fazer-se à séria, é a conversa do costume sobre casos de polícia. Júlia Pinheiro, uma entre poucos profissionais com estaleca para apresentar o programa, tem todavia um comportamento vergonhoso nas entrevistas aos antigos criminosos porque, se bem que diga o contrário, pretende acentuar o carácter "criminoso" do personagem principal: basta ouvir como ela usa o presente do indicativo nas perguntas, coisas do género "como é que você faz para matar" - pergunta que é feita a um homem que, depois de cumprida a pena, está em liberdade há 15 anos. Seria o mesmo que perguntar-lhe a ela: então a Praça Pública na SIC, está a correr bem? Ou: está a gostar de trabalhar na RTP? Tal como o Bombástico, o Eu Confesso é um melodrama, é estilo excessivo. è parte a entrevista aos ex-condenados, que revela o seu processo mental, o programa é um aborrecimento porque os casos estão enterrados num profundo passado; presentifica um drama que já foi; o lado representacional sobrepõe-se por completo ao dramatismo que houve na época em que o crime se inscreveu. A votação do "júri" é absurda e uma palhaçada, porque os ex-condenados já estão há anos reintegrados na sociedade. Por isso, o melodrama é fundamental para se poder armar a tenda do "júri" ali presente e sacar umas massas em chamadas SMS aos "jurados" de telecomando e telemóvel. O Eu Confesso tenta revivificar hoje emoções que já morreram, coisa que a ciência mostra ser bem difícil. Daí que a encenação melodramática substitua o desenterrar de emoções. E o programa faz essa coisa arrepiante que é o de juntar num espaço de entretenimento o condenado e a vítima, empurrando-os a uma representação de dores passadas e crimes julgados. Os crimes são reconstituídos em vídeo, com artistas. (O mesmo sucede no programa O Crime Não Compensa, da SIC, neste caso com qualidade Ed Wood: quanto pior a reconstituição melhor. De tão mal representados, os crimes reais tornam-se cruel comédia de gargalhar.) O Eu Confesso tem no título a mentira total: ninguém confessa crimes no programa. Os ex-condenados já confessaram, ou não, no tribunal e o mais que se faz ali é uma espécie de perfil psicológico. Como quase toda a TV, o programa pretende harmonizar a sociedade, amaciar conflitos, pretende fazer sair dali o antigo réu e a antiga vítima de mãos dadas, o que é representado iconicamente pela ponte metálica que no cenário liga a esquerda e a direita que ladeiam a apresentadora. A TV gosta de "paz e amor" porque são sentimentos que fomentam consenso e, portanto, audiências. O primeiro convidado, Vitorino, a quem chamavam o "Dillinger português", baralhou o esquema ao programa porque, tendo uma ausência de estados emocionais digna de estudo por António Damásio, não entrou no jogo de Júlia Pinheiro. Ele corrigiu-a quando ela lançou as armadilhas das perguntas no presente do indicativo, disse a verdade sobre a sua própria ausência de emoções e, por isso, desconcertou Pinheiro, a audiência e o "júri" que esperavam que ele confessasse arrependimento e derramasse "paz e amor". Assim, 15 anos depois de reintegrado na sociedade, o telejulgamento condenou-o "socialmente", quando, afinal, o que queria era condená-lo comunicacionalmente por ele não ter representado o teatro do mito do arrependimento que o programa e a televisão lhe queriam impor. Às vezes, porém, a realidade-realidade impõe-se não só à ficção mas também à realidade-ficção: este sábado, a TVI substituiu o Eu Confesso por um Especial Informação sobre a pedofilia com nome bíblico, "O Sofrimento dos Inocentes". Tratou-se de um debate sério e normal, mas ocorreu no cenário do Eu Confesso, foi moderado pela apresentadora do Eu Confesso e teve telefonemas e mensagens SMS como o Eu Confesso. O melodrama de realidade-ficção do Eu Confesso cedeu o seu tempo e o seu espaço à realidade-realidade. Por agora. Vivemos tempos agitados que levantam folhas caídas no sossego das nossas almas sociais. Eu confesso, eu não confesso, eu acuso, eu réu, eu testemunha, eu juiz, eu telejuiz, eu decido, eu não decido, eu polícia, eu mensageiro, eu condeno, eu absolvo, eu prendo, eu liberto, eu assassino, eu abaixo-assino, eu comento, eu não comento, eu falo, eu interrompo, eu calo, eu censuro, eu autocensuro, eu revelo, eu minto, eu real, eu ficcional. è nossa frente, ao nosso lado e dentro de nós confundem-se palco e mundo, actor e espectador, apresentador e apresentado, vítima e criminoso, escândalo e escandalizado, plateia e palco, paisagem e cenário, frente e verso do ecrã. |