Eduardo Cintra Torres

Pato com Laranja Nº 287


A polémica de juízes e bastonários proporcionou ao Bombástico na sexta-feira armar-se em vítima dos poderosos e pôr-se de novo ao lado dos desfavorecidos, ao nível do discurso. Numa notável peça de oratória melodramática e populista, bem escrita, o apresentador aproveitou os ataques para dizer ao seu público (classes C2 e D) que os poderosos não gostam do Bombástico porque o programa defende os que “não têm voz”

Ao estilo excessivo do Bombástico, as corporações de juízes e advogados responderam com estilo demasiado excessivo para quem faz do rigor da palavra um modo de vida. O vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura disse que não viu o programa, mas pediu a sua suspensãoÉ o que a lei não permite. O bastonário da Ordem dos Advogados também condenou o programa sem o ter visto. Estranha displicência de quem sabe o que é o ónus da prova!

As elites em Portugal não sabem outra - ou demitem ou proíbem. E, como as leis que elas mesmo fizeram aprovar não permitem suspender os programas deste género, então preparam-se para mudar as leis. Foi uma reacção típica duma sociedade em que a democracia é (ainda) aristocrática no sentido em que João Carlos Espada lhe dá no último "Expresso", embora ele diga o contrário (o seu artigo poderia, aliás, ter sido escrito no tempo de Sua Majestade a Rainha Vitória e de Sua Majestade Don Alfonso XIII).

Os polemistas ofendidos falam de direitos, liberdades e garantias. Não é pouco - mas não é tudo. Silenciam, como sempre, as questões de classe. A TV de “realidade” desequilibra os poderes, fica sem se saber quem manda, se as elites aristocrático-democráticas de que Espada tem saudades antecipadas, se a vontade de largos extractos de pessoas através de formas de pressão, como os "mass media", também eles inscritos na democracia.

Estes programas arrogam-se o direito de falar em nome de extractos sociais e muitas vezes conseguem fazê-lo, ou pelo menos os espectadores acreditam nisso, o que é importante como processo de identificação. Quer dizer, os capitalistas da televisão mostram e denunciam desigualdades da sociedade capitalista para assim melhorarem os resultados das suas empresas capitalistas. Não há nisso nenhum mal, pelo contrário - excepto se os direitos, liberdades e garantias forem pontapeados.

A reacção excessiva do mundo institucional e para-institucional da justiça - juízes, advogados, governantes, deputados, comentadores - pretendeu aproveitar as falhas de duas edições dum único programa para censurar e se possível proibir todo um género televisivo. Há dezenas de anos que esta cena se repete. É mais um episódio de uma longa história que começa, entre nós, com a demissão forçada de João Palma-Ferreira, presidente da RTP, pelo facto de a emissora do Estado ter mostrado um filme com maminhas, um tal “Pato com Laranja” só por isso famoso.

Hoje o sexo já não é tabu. Ninguém dos governos, da Alta Autoridade, da máquina judicial, do Conselho Superior de Magistratura, da Ordem dos Advogados, do PP, da Cruz Vermelha ou do Instituto do Consumidor pediu a suspensão ou proibição dos filmes pornográficos que são acessíveis em sinal aberto a 3.250.000 portugueses com TV por cabo, mais de 30 por cento da população. Há um silêncio comprometedor de instituições e da gente séria que se ofende com o Bombástico. Para mim é evidente que, se o sexo já não é tabu, as diferenças de classe ainda são.

O Bombástico é assim burlesco, excessivo e melodramático porque se destina às classes C2 e D. A audimetria comprova, pelo índice de afinidade, que só nesses dois grupos sócio-demográficos o Bombástico excede a média esperada. Poderíamos dizer que o Bombástico é um “assunto” para os pobres e os velhos e que, se fosse um espectáculo em cena nas vilas e aldeias e não um programa de TV, as elites corporativas em nada estariam preocupadas. Mas a TV entra-lhes em casa, e assim põe em causa os seus poderes aristocráticos e corporativos.

Fez-me impressão que a reacção corporativa fosse tão rápida: realmente, as corporações institucionais da justiça pediram a suspensão dum programa antes de o verem. No mesmo dia da semana passada em que essa reacção atingiu o zénite, a TVI mostrava uma reportagem duma vítima do acidente da TAP na Madeira que espera há 23 anos (?!) uma decisão definitiva do aparelho judicial português sobre a sua queixa. São casos como estes que a TV de “realidade” aproveita. E a diferença está em que enquanto as vítimas destes casos quase só podem recorrer a programas mete-nojo, as elites ofendidas pelos programas podem proibi-los mudando a lei.

A polémica de juízes e bastonários proporcionou ao Bombástico na sexta-feira armar-se em vítima dos poderosos e pôr-se de novo ao lado dos desfavorecidos, ao nível do discurso. Numa notável peça de oratória melodramática e populista, bem escrita, o apresentador aproveitou os ataques para dizer ao seu público (classes C2 e D) que os poderosos não gostam do Bombástico porque o programa defende os que “não têm voz”.

Em segundo lugar, o Bombástico conseguiu mudar de tom sem que tal passasse para o seu público. Como o fez? Anulou todo o tipo de referências directamente ofensivas de juízes e autoridades, aplacando a fúria justiceira das elites e evitando coimas; amaciou o estilo excessivo, como é hábito fazer-se em TV ao terceiro episódio; e adoptou um tipo de ironia básica muito eficaz, porque, depois de apresentar os casos de “injustiças”, diz coisas do género: isto é um horror, mas nós gostamos muito dos juízes que decidem estas coisas e dos responsáveis por estas coisas (e mostra a mão sem quatro dedos duma bebé). Adeus coimas, adeus suspensões! Nenhum juiz poderá usar uma lei para suspender a ironia, porque, graças a Deus, a ironia está acima da lei.

Sobre a “realidade” lá de fora, o Bombástico constrói a sua “realidade” para as classes C2 e D. As elites estão zangadas? îptimo, mas não pensem logo em novas leis, suspensões e queixinhas ao chefe de Estado. O seu conceito de democracia não aceita as manifestações da lumpen-televisão. A democracia ainda não está, afinal, arreigada nestas elites. Elas poderiam protestar usando as mesmas armas da TV comercial: ao capitalismo do lucro, responder com o capitalismo das multas, aplicando coimas altas ou organizando campanhas contra os anunciantes dos intervalos destes programas; ao apelo às audiências, poderiam responder com o protesto social em quantidade, com protestos: convidem as pessoas a escrever cartas e e-mails para a SIC e a TVI, convidem-nas a telefonar para os canais, organizem abaixo-assinados e manifestações à porta deles em Carnaxide e Queluz de Baixo. Mas, por favor, não suspendam nem proibam.

Com o alargamento da democracia, com o consequente sufoco da ditadura democrática da aristocracia republicana pela “ditadura do proletariado” através dos mass media, só tem sentido responder com mais democracia ainda. A isso se pode chamar sociedade civil, mas parece que esse “conceito” só atrai a ridicularização de comentadores e de políticos que preferem uma sociedade pouco democratizada e não se habituaram a viver num mundo com uma explosão de poderes em que até os desfavorecidos são, ou julgam ser, representados por programas de TV. Quanto ao Bombástico, com uma audiência de apenas 500 mil pessoas, não se lhe deve dar mais importância do que ele tem. Como diria Pinheiro de Azevedo, é só fumaça. O povo é sereno.