Eduardo Cintra Torres

A Televisão de "Realidade"


Estes programas só são possíveis porque as pessoas - nós - mudámos social e psicologicamente. Hoje, a maioria das pessoas dispõe-se a expor a vida privada, mesmo íntima, no espaço público, seguindo o exemplo dos seus políticos, artistas, escritores e das suas elites em geral - pois foram elas e não "as massas" que iniciaram este processo de publicitação da vida privada

Bombástico, Eu Confesso, Escândalos e Boatos, Vidas Reais, Big Brother, Academia de Estrelas, Operação Triunfo: estes e muitos outros programas enquadram-se num enorme género televisivo em permanente mutação, chamado nos estudos universitários e no jornalismo anglo-saxónicos "reality TV" ou "reality television".

A "realidade" é um tema fugidio. As análises académicas deste género balançam entre a aproximação pós-modernista - que destaca a construção duma realidade no ecrã - e a convicção modernista de que ainda há uma realidade "lá fora", isto é, uma realidade que "está fora da representação, ou pelos menos não lhe está totalmente submetida", como refere o organizador de um dos primeiros livros totalmente dedicados ao tema (James Friedman, "Reality Squared").

Entre um e outro caminho, o melhor é seguir o prudente conselho de Vladimir Nabokov, no pósfácio à sua "Lolita": "realidade" é "uma das poucas palavras que nada significam sem aspas". Na TV de "realidade", vemos uma relação mais ou menos ténue com o mundo "lá fora" e, em simultâneo, uma construção de uma nova "realidade" na televisão.

O programa Vidas Reais (TVI) é nisso exemplar: baseando vagamente os seus "episódios" em casos verdadeiros, a produção encena uma representação como no teatro, num estúdio-palco, com público em anfiteatro intervindo buliçosamente como nas representações teatrais do passado e com actores amadores, pessoas vulgares contratadas para representarem outras pessoas vulgares.

O Vidas Reais é, portanto, tão próximo da "realidade" quanto um filme retratando a vida de Pablo Picasso ou a série Processo dos Távoras. Todavia, enquanto filme e série se filiam sem hesitação na ficção, o Vidas Reais consegue com inegável talento sugerir, pelo imediatismo, pelo espaço, pelo amadorismo dos actores, pelo tipo de diálogo, que se trata de "realidade": o Vidas Reais é uma ficção magistral porque consegue a imitação da "realidade" como pouca ficção; ao mesmo tempo, é uma fraude porque, sendo ficção, sugere que é "real", enganando os espectadores para além do razoável.

Quer o Vidas Reais, quer outros do mesmo ramo, como o Bombástico, baseiam-se em estórias concretas de pessoas concretas - a TV é o "media" do concreto absoluto. Geralmente, são vítimas ou de injustiças ou de alguma outra coisa (acidentes, situações bizarras). O programa da TVI Eu Confesso é do mesmo tipo, confrontando as vítimas com os algozes e pondo o tema à discussão por especialistas, pseudo-especialistas ou não-especialistas.

Historicamente, como refere o estudioso norueguês J. Gripsrud, a TV sempre se orientou para os valores estéticos do imediatismo, do directo e da actualidade, sendo o "media" que está mais próximo do "real". Ao que ele acrescenta a fome insaciável que as sociedades modernas mostram de todos esses valores e, em primeiro lugar, do que é "real".

Essa fome é alimentada por técnicas de vídeo que permitem ir muito longe na captação ou simulação da "realidade"; e alimenta audiências. Os programas têm público porque há indivíduos predispostos a vê-los. E vêem. Ou a TV não os produziria.

Estes programas só são possíveis porque as pessoas - nós - mudámos social e psicologicamente. Hoje, a maioria das pessoas dispõe-se a expor a a vida privada, mesmo íntima, no espaço público, seguindo o exemplo dos seus políticos, artistas, escritores e das suas elites em geral - pois foram elas e não "as massas" que iniciaram este processo de publicitação da vida privada. Quem poderia imaginar, há 50, 30 ou mesmo dez anos, que os parentes de assassinados se juntassem num palco de entretenimento com os assassinos? Ou andassem à chapada com os parentes próximos, como em Jerry Springer?

O programa mais exemplar revelando esta tendência a mostrar sem vergonha a vida privada passou recentemente no canal americano HBO. Nele se mostraram clientes de um prostíbulo negociando o preço e os serviços pretendidos da prostituta (o programa não mostrava a concretização dos serviços). Foram filmados por uma câmara escondida. Depois, pediram-lhes autorização para pôr no ar. Dos 50 filmados, 47 aceitaram que as imagens fossem mostradas na TV, isto é, 94 por cento.

Há vários subgéneros dentro da TV de "realidade", desde o "talk-show" confessional mais ou menos popular (Herman José, Fátima Lopes, Manuel Luís Goucha, Praça da Alegria, Oriente, Escândalos e Boatos), aos jogos de "realidade" mais ou menos misturados com telenovelas (BB, Operação Triunfo, Survivor), passando pelos programas de polícia (Casos de Polícia, 112, etc.) e pelos programas de burlesco baseados num voyeurismo do ridículo dos outros mais ou menos ingénuo (Apanhados, Olhó Vídeo, etc). Há ainda os programas de imagens "excessivas" de catástrofes naturais, acidentes, etc, ou de bizarrias voluntárias (os chamados "recordes" do Guiness).

Alguns destes programas, como o Bombástico, incluem imagens previamente gravadas, que acentuam a "realidade" em construção com uma dose acrescentada de autenticidade e imediatismo. O exemplo mais básico são as típicas imagens gravadas por câmaras de segurança de supermercados, bancos e outras empresas, de roubos, assédios, etc.

Todos estes programas são, na forma, melodramáticos. Alguns são "bonzinhos". Pretendem ter a máximo audiência em torno de bons sentimentos e valores consensuais: por exemplo, a Academia de Estrelas, a Operação Triunfo, os "talk-shows" diurnos. Outros são chocantes. Quais? Os que querem ser chocantes. São suplementos de anfetaminas para as estações. Chocam parte da audiência, não toda.

A literatura sobre este género de programas acentua que os programas de "realidade" são interpretados de maneiras diferentes pelos vários públicos ou mesmo indivíduos e que há em muitos destes programas, por mais incipiente que seja, um certo "democratainement" (ver, por exemplo, Bernardette Casey e outros, "Television Studies. The Key Concepts", Londres, Routledge, 2002). Este conceito deriva da concepção participatória dos programas, nos quais há maior ou menor debate das questões.

Naturalmente, Bernardette Casey e os outros autores desse livro não viram o Bombástico, o Eu Confesso ou o Ratinho - talvez mudassem de opinião! Mas o conceito levanta uma questão que não é desprezível: os Bombásticos estão adaptados aos valores de um certo público, para quem a gritaria do Bombástico faz sentido, enquanto para outros públicos - aos quais esses programas não se destinam - aquilo não passa de selvajaria.

Estes são aspectos teóricos que poderiam acalmar um pouco o debate. Mas, na segunda-feira, o Olho Vivo vê-se obrigado a descer às profundezas da "realidade" de juízes, bastonários, santas piedades e justas censuras em torno dos Bombásticos pátrios: esta pobre nação não tem meio-termo.