Eduardo Cintra Torres

O Programa Mete-nojo


José Carlos Soares, apresentador do Bombástico (SIC), prometeu, em jeito de linha editorial, fazer "a defesa dos portugueses", "apontar o dedo às injustiças" e "dar voz aos sem voz". Dando a entender que outros, como Vidas Reais, da TVI, vivem de situações inventadas e da prestação dos chamados "figurantes" - actores amadores -, o apresentador do Bombástico repetiu que os casos relatados não são "fruto do trabalho de nenhum guionista" e que os protagonistas não são figurantes mas "pessoas reais".

Disse o mesmo na semana seguinte, mas um episódio envolvendo os produtores do próprio programa e um jornalista que teria sido convidado para o apresentar, foi de tal forma burlesco que até fazia do Vidas Reais um programa a sério. E não há coincidências: o Bombástico e o Vidas Reais concorrem no mesmo horário.

O Bombástico enquadra-se num sub-género de programas populistas de info-entretenimento que ocupa cada vez mais prime-time em todo o mundo. Apresenta casos de pessoas que enfrentam uma problema grave ou suposta injustiça nos tribunais. Os casos vêm das franjas da sociedade sem acesso à informação e sem capacidade de intervenção; alguns casos são de duvidosa justiça ou de atrasos judiciais, outros são casos pessoais que não interessam aos teleprogramas de informação. No geral, o palco faz-se com casos de franjas sociais do século XXI e num estilo excessivo, ora burlesco ora de terrorismo emocional e verbal. Ao resultado, poderemos chamar "lumpen-televisão". Era isso que o Bombástico queria ser, e conseguiu: "lumpen-televisão".

No cenário do pequeno estúdio, uma imagem urbana nocturna infunde o tom taciturno e melodramático que aos gritos, uma música de série policial aterrorizadora acentua do primeiro ao último minuto. O tom assumido por José Carlos Soares é não só melodramático como deveras bombástico. No segundo programa, acrescentou à performance a sua faceta de truão. Ao pé dele, Vítor Bandarra, o apresentador do programa mais semelhante (o defunto Quero Justiça, TVI), parecia um menino de coro.

De que trata o Bombástico? Do caso da Dona Maria das Dores. O companheiro batia-lhe. Está preso há três anos, mas não por lhe bater. Não nos foi dito porquê. Será libertado em Setembro e ameaça matá-la. Ela chegará ao estúdio "dentro de minutos", mas mostram-na numa entrevista gravada. O apresentador interrompe a gravação com vários "aguenta aí!" ao realizador porque Soares diz-se tão "chocado" que, apesar de conhecer a entrevista, tem de a rever. O processo é repetido várias vezes, o que desde logo o desmonta como técnica pobre de representação e não como situação espontânea. No segundo programa, Soares fez-nos ver cinco vezes um grupo de pessoas de costas a chegar a um lar de acolhimento de crianças.

O apresentador vira-se para a câmara e aponta o dedo ao agressor da Dona Dores: "nós vamos estar de olho em si", "eu tenho estado a encherÉ", "se eu sei que você volta (a fazer destas) eu vou dizer o seu nome, vou dizer a prisão em que você está". Soares deu a entender que, se denunciasse o preso, os outros prisioneiros lhe limpavam o sebo.

Outro caso: um professor do ensino especial em Baltar abusou sexualmente duma menina deficiente; o tribunal de Paredes condenou-o a três anos com pena suspensa e multa. O Bombástico achou pouco. O apresentador vira-se para a câmara e chama ao professor "tinhoso e nojento": "Eu tenho nojo de si!", "Você, senhor professor, enoja-me!É Você é nojento!" "Esta gente mete nojo."

Faltava, porém, o momento definidor do Bombástico. Soares pegou no acórdão do tribunal de Paredes e disse que os "factos" ali dados como não provados "são os mais graves" - isto é, se são os mais graves é porque existiram! E, dizendo aos gritos "senhor professor, você enoja-me!", o jornalista lançou o acórdão do tribunal ao chão, com raiva, e deu-lhe um pontapé. O realizador completou a cena mostrando um grande plano do acórdão no chão. A SIC gostou muito deste momento, porque o utilizou como promoção na semana seguinte. E, no segundo programa, Soares voltou a amarfanhar uma decisão dum tribunal e a botá-la no chão.

Estes segundos simbolizaram o Bombástico. Os autores, apresentador e SIC arrogam-se o direito de, num programa de entretenimento melodramático baseado em casos reais, com uma "investigação" mais do que sumária, se assumirem detentores da verdade, se substituirem ao sistema judicial e achincalharem-no, amachucando e pontapeando um seu acórdão. A televisão entrega-se aqui a um populismo antidemocrático, badalhoco e apalhaçado para conquistar audiência nas classes com menos habilitações académicas, inculcando que o sistema democrático é incapaz de resolver problemas classistas ("isto da lei é só para uns") e que é à gritaria ("Vocês são uns merdas!", grita Soares) e que é à porrada que isto vai. Se a justiça em Portugal é fracota, esta televisão é bem pior.

No momento seguinte ao pontapé no acórdão ficámos a saber por um telefonema em directo da família da menina abusada que os "factos" que o próprio Soares apresentara eram falsos: a menina não foi violada, como Soares dissera (embora tenha havido abuso sexual); e o professor não continua na escola, como Soares disse (foi expulso).

Parafraseando José Carlos Soares, o Bombástico é um programa mete-nojo. Não é "apenas" um entretém. O Bombástico ultrapassa os limites da decência e da ética de informar ou entreter - e por isso é que, apesar de tratar de informar sobre "casos reais", Soares entregou a carteira de jornalista à Comissão que a regula. Se os casos são reais, como o programa insiste, deveriam ser tratados com rigor informativo.

Há muitos programas pelo mundo em que se reconstituem com rigor crimes não resolvidos e em que se divulgam fotos de desaparecidos (o que o Bombástico fez na primeira semana, mas depois desapareceu a polícia a informar, bem como desapareceram um advogado e uma psicóloga; devem ter desaparecido para não ficarem colados à "lumpen-televisão"). Por esse mundo fora, estes programas procuram audiências e adoptam um tom melodramático, mas fazem-no com decência e sem ofender a investigação, a justiça, sem pôr em causa os participantes. O Bombástico preferiu encostar-se ao sub-género brasileiro Ratinho. Parece sina do operador que ocupa o segundo lugar no share generalista: há uns anos foi a TVI a optar pelo Ratinho e pelo Big Brother; agora é a SIC que mete a mão neste Bombástico, depois do Bar da TV e do Masterplan.

Em termos de programas, este parece ser o caminho principal da televisão generalista comercial. Com as audiências dos grupos sociais mais dinâmicos a fugirem para a TV temática ou de vez, sobram aos generalistas os pobres e os velhos. E é com programas do tipo Bombástico e Vidas Reais que os generalistas os querem conquistar ou conquistam mesmo. Daí resultando ainda menos audiência entre os grupos sociais mais dinâmicos. As estreias das estações generalistas nas próximas semanas prometem uma televisão toda ela bombástica.