Eduardo Cintra Torres

Espevitar a Dona Arminda


Por que razão para certas pessoas um espaço da Gulbenkian é bom serviço público e um espaço das instituições de solidariedade social é mau? Porque há elites que querem a TV de serviço público para si e não ao serviço de outros espectadores que, por acaso, até precisam muito mais da TV do que elas

Desde que o Governo apresentou as suas "Novas Opções para o Audiovisual", a 17 de Dezembro, a opinião publicada quase se centrou na proposta para a participação da sociedade civil na segunda licença nas mãos da RTP; a oposição foi frontal.

Vários comentadores disseram mesmo que a sociedade civil "não existe". O zénite desta atitude foi a do dirigente do PCP Ruben de Carvalho que, no "DN", disse que a sociedade civil não consta da legislação em vigor! Eu acrescentaria que também não está nos Estatutos do Partido e no Plano Quinquenal... e que por isso é que o PCP vai perdendo eleitorado.

A posição mais divertida foi a de Eduardo Prado Coelho (EPC) que, num artigo comparou a sociedade civil à "Dona Arminda da tabacaria da esquina". Através desta figura de estilo (uma sinédoque de menor alcance), o meu prezado e sempre estimulante professor exprimiu o que pensa do todo através da parte que enunciou: a sociedade civil é a "dona Arminda" que imaginamos guardando os euros no bolso do avental e dando graças ao Senhor por saber as primeiras letras e, assim, distinguir os títulos que vende aos clientes. A "dona Arminda" é um outro nome para "as massas".

Se estou de acordo com EPC de que as "donas Armindas" não sabem fazer televisão, tenho a certeza de que merecem, como espectadoras, ter programas de TV de serviço público.

Sem parecer, esta questão entronca com a da esquerda e direita que EPC abordou noutros artigos a propósito de textos meus e do director do PÚBLICO, nos quais me encostou à direita e à negação da ideologia e das elites. São carapuças que não me servem. Primeiro, porque inúmeras vezes tenho chamado a atenção para a negação da ideologia na sociedade capitalista democrática contemporânea (nomeadamente por intelectuais). Segundo, porque o que ataquei na esquerda no meu artigo da semana passada foi precisamente o facto de a esquerda (do PS ao BE) variadas vezes tomar posições conservadoras (o que nada tem a ver com "esquerda caviar", expressão que nunca usei nem tenciono usar). No mesmo sentido, nada tenho contra o conceito de elites. Pelo contrário, apenas verifico que boa parte das elites nacionais está ainda no mesmo pé em que Raul Brandão as via, esforçando-se por que "o povo" permaneça medíocre de forma a esconder a sua própria mediocridade e a manter o seu predomínio sem esforço na sociedade.

O segundo ponto de debate lançado por EPC respeitava à complexidade da "sociedade civil", que eu teria pretendido simplificar. Faz parte duma argumentação não complicar todos os argumentos (ou os artigos nunca mais acabam, como ambos sabemos!). Concordo decerto com EPC que há dimensões da sociedade civil dentro do Estado e vice-versa, mas isso não diminui o interesse de renovar um canal da TV pública a partir dum ponto de vista mais de fora do Estado do que de dentro e abrindo a mais sectores a possibilidade de criarem ou fazerem criar programas novos.

O terceiro ponto diz respeito ao "princípio expressionista": EPC vê-me a defender um canal de TV pública em que todos se podem exprimir por terem esse direito. Não me importo que me veja a defender este ponto, mas não tanto assim. O pressuposto de EPC é o de que só os artistas e os especialistas se sabem exprimir correctamente (o que em televisão não é certo) e, se calhar, que só o que eles exprimem é interessante (o que para mim é errado; o interesse está em cada espectador). Logo, aceita-se que a Gulbenkian pudesse ter um espaço televisivo mas não que a União das Misericórdias tivesse outro.

Por que razão para certas pessoas um espaço da Gulbenkian é bom serviço público e um espaço das instituições de solidariedade social é mau? Tentei responder a esta pergunta na semana passada: porque há elites que querem a TV de serviço público para si e não ao serviço de outros espectadores que, por acaso, até precisam muito mais da TV do que elas; porque a essas pessoas interessa o eventual espaço da Gulbenkian e não interessa o das IPSS. Não lhes interessa sequer o teor dum programa proporcionado por essa área da sociedade. E, assim, com egoísmo, pretendem um canal público para si e fechado ao Outro. Isto pressupõe um desprezo classista, uma oposição a que se proporcione a espectadores diversificados programas de serviço público cujo conteúdo lhes interesse e que correspondam aos seus anseios de aprendizagem, etc.

As "Novas Opções" do Governo - que retomam sugestões do relatório do grupo de trabalho de que fiz parte, no qual se menciona cinco vezes a colaboração com a sociedade civil - parecem-me mais de esquerda do que boa parte da política audiovisual que durante anos o Governo anterior pôs em prática e do que posições agora defendidas por pessoas de esquerda (os conceitos de esquerda e direita são pouco operacionais quando aplicados em bloco a organizações, que vagueiam por políticas muito diversas e dificilmente classificáveis nesses termos, ou a pessoas, cuja prática não se orienta sempre por princípios ideológicos enquadráveis.)

Nem toda a esquerda se revê nas posições que tenho vindo a referir. Além de Luís Osório, com quem tive o gosto de conviver no Grupo de Trabalho (PÚBLICO, 20.12), verifico que Augusto Santos Silva encontra no projecto a possibilidade de, a partir da oportunidade aberta pelo Governo, começar-se qualquer coisa de novo que seja melhor do que o que existe (PÚBLICO, 28.12). Ambos vêem na possibilidade de a sociedade civil participar num canal público um desafio que seria errado as "instituições com vocação e interesse na produção de conteúdos televisivos" desprezarem. A mim, faz-me impressão que outras pessoas que se dizem de esquerda não consigam ver as janelas de oportunidade que tal abre para a produção de programas novos, alternativos, diferentes e que não têm que ser institucionais mesmo que proporcionados por instituições (a curteza de vista de alguns comentadores neste domínio é confrangedora: pergunto-lhes o que tem "a priori" de institucional uma "Paixão" de Bach gravada na Gulbenkian? Que tem "a priori" de institucional um documentário sobre erradicação de barracas ou problemas de integração de imigrantes patrocinado por instituições de solidariedade social?)

No final, é de coisas muito práticas e não apenas de debate de ideias que falamos, de programas e de espaços que sejam pagos com o dinheiro de todos. Seria bom que o debate dos nossos habituais comentadores não se limitasse às três horas de "prime-time" da RTP2 que eles costumam espreitar (e que ainda por cima estão contempladas com formato semelhante nas "Novas Opções"!) e experimentassem ver o que a RTP2 faz nas outras 21 horas do dia e que nos custa milhões de contos. Talvez aí encontrassem espaço para bons programas de serviço público proporcionados pela sociedade civil em acção. E se a sociedade civil pouco se mexe, mais vale espevitá-la do que desprezá-la. Não é esse, também, o papel do Estado e das elites numa sociedade democrática?