Eduardo Cintra Torres

A Maré Negra e a Comunicação Política


A cobertura mediática do caso Prestige pode analisar-se no âmbito fascinante das formas emergentes da política contemporânea. Mas antes vale a pena comparar as consequências meta-jornalísticas do caso com as do caso da Casa Pia.

No caso da pedofilia, a TV submergiu-se numa bateria de críticas de comentadores que só viram «excessos». No caso do Prestige, ninguém os viu, à excepção de Mário Soares, que notou com razão como o jornalismo traçava uma fronteira absurda entre as zonas económicas de Portugal e Espanha. Mas a sua observação não tomou em conta que o caso já chegou aos jornalistas inquinado por fronteiras no alto mar: o governo espanhol enviou o navio para águas portuguesas e o governo português dissuadiu militarmente o abuso.

Além da crítica de Soares, ninguém se lembrou de encher a imprensa com a tinta negra da denúncia da TV pelos «exageros» da cobertura, por se mostrar nos telejornais (às crianças!) pescadores galegos a chorar (exploração de emoções!) e tareia em A Coruña (violência!). A sensibilidade das crianças aqui já não conta... porque a dos comentadores não se choca: a cobertura da maré negra estava de acordo com a sua sensibilidade e posicionamentos político e de classe. Fecho parêntesis.

No caso do Prestige, os governos de Portugal e Espanha tomaram atitudes comunicacionais radicalmente diferentes. Em Espanha, escondeu-se informação e a gravidade do caso. Em Portugal, abriu-se a informação (briefings no Instituto Hidrográfico, jornalistas em voos da Força Aérea). A nível comunicacional, os governos galego e espanhol não corresponderam às expectativas dos cidadãos, não compreenderam as suas preocupações nem, pior ainda, a importância actual de corresponder às expectativas comunicacionais dos cidadãos.

Não se fica por aqui o contraste. É que esta diferença de atitude comunicacional corre a par e passo com a própria acção política. Não é apenas a comunicação que resulta da acção política: também o contrário. A atitude comunicacional transparente de Lisboa foi acompanhada por medidas concretas (meios na zona, prevenção, acompanhamento das manchas, visitas ao local, etc). E à atitude comunicacional opaca de Madrid correspondeu uma ausência de medidas adequadas à catástrofe ecológica. As duas coisas andam juntas.

Mesmo que a catástrofe chegasse às costas portuguesas, a transparência comunicacional e as medidas preventivas seriam suficientes para impedir os mesmos efeitos políticos que tiveram em Espanha o silêncio brutal de Madrid e a ausência de mais medidas e meios.

Esta interacção entre a mediatização dos assuntos políticos e a própria ontologia do pensamento e da acção políticas não têm sido abordadas pelas teorias sobre os media, e pelos especialistas de TV, para já não falar dos «treinadores de sofá». Não há estudos aprofundados sobre o assunto, à parte os de John Thompson. Escreve um professor australiano: «os principais teóricos sociais e políticos parecem continuar a tradição da ciência política com os seus conspícuos silêncios para com os processos mediados de comunicação política - apesar do envolvimento central dos media em processos de modernização reflexiva, aprofundamento democrático e condução de subpolíticas.»

Os estudos são em geral sobre a "cultura popular" e não sobre o "conhecimento público". Como os intelectuais geralmente tratam os seus concidadãos por "as massas" (versus eles mesmos, "os indivíduos"), as questões da comunicação são abordadas pelo lado dos supostos "efeitos" que a TV tem sobre "as massas" e não sobre a vida, debatida, interactiva, do cidadão. E - ponto fulcral - nunca se abordam os efeitos profundos da comunicação mediatizada sobre a própria acção política: como se alteraram praxis e retórica políticas; como se relacionam praxis e ideologia; como se alterou o conceito de serviço público; como a acção política se tornou mais rápida; como teve de chegar mais longe, lá onde chega uma câmara de TV; como inúmeros problemas sociais deixaram de ser ignorados; como a informação e a transparência (caso Prestige) têm de substituir a opacidade e o silêncio; como os temas são hoje muito mais debatidos no espaço público do que antes da TV, criadora de "locais simbólicos" de debate; como esse debate coexiste dentro e fora dos locais da "política formal", como o parlamento.

Qual o potencial democrático deste debate (em sentido amplo) proporcionado por esta "mediated publicness" na TV e nos outros media? Como serve o debate os processos deliberativos mais amplos na «democratização da democracia"? É ainda hoje a política o domínio restrito da "política formal", concepção em que se enquadra a acção política e a comunicação do governo espanhol no caso Prestige? Ou já se praticam - incluindo na TV - formas mais amplas de política, "politizando-se" áreas públicas e privadas até hoje alheias à política, como referem Ulrich Beck no seu conceito de "subpolítica" (o prefixo "sub" não é aqui pejorativo) e Giddens no conceito de "life politics"?

No caso Prestige, vêmo-nos numa nova sociedade em que tudo diz respeito a todos - e não apenas às elites interessadas -, isso implicando uma forte comunicação entre governantes e governados e um grande debate nas praças públicas reais ou virtuais, como a TV. Esta nova sociedade é pós-elitista. Nela, um governo que ignora a comunicação, a nova "acção directa" e a subpolítica arrisca-se a perder eleições, como sucederá porventura ao PP espanhol na Galiza e em Espanha. A nobreza de Aznar em pedir desculpa pode ter chegado tarde demais para salvar uma forma ultrapassada de política.

É nessa nova sociedade que, em Portugal, o governo anunciou a aprovação do conceito dum canal público de TV com a participação da sociedade civil. Trata-se duma proposta inovadora, progressiva, que se enquadra nesta sociedade pós-elitista, numa democracia mais democratizada, num alargamento da participação dos cidadãos e dos organismos não políticos (subpolíticos) na vida activa da esfera pública. O ataque de quase toda a esquerda ao projecto partiu de posições elitistas e conservadoras. De Miguel Portas (BE) e Vicente Jorge Silva (PS) até Bruno Dias (PCP) e Isabel de Castro ("Verdes"), todos se interrogaram com displicência sobre "o que é isso de sociedade civil"! Para voltar a Giddens, a esquerda tradicional está cada vez mais conservadora e agarra-se ao "welfare state" estabelecido. Se Verdes, BE, PCP e PS não sabem o que é a sociedade civil, o que andam a fazer na política actual? O que entendem por cidadania? E porque falam há tantos anos de sociedade civil? Será que para eles a sociedade civil é só isso - falar - e receiam que a cidadania respire e fale por si? Será que a TV pública só lhes interessa para os mostrar a eles - elite política - e aquilo de que eles gostam - elite de gosto?