Eduardo Cintra Torres

Saindo do Terceiro Mundo


Erros? Os normais nas actividades em directo: um político "em directo" também se engana, um professor numa aula "em directo" também dá uma indicação errada, um cozinheiro "em directo" pôe sal a mais, um carpinteiro "em directo" martela a ponta do dedo.

No texto "A Caminho do Terceiro Mundo" (05.12), JPP exprime a condenação do caso da Casa Pia em termos comunicacionais e com o seu habitual des-gosto (assim, com hífen). Acusa a TV de não ter tido "intenção altruísta" no tratamento do caso, o que é óbvio mas irrelevante: de pouco interessam intenções objectivas ou subjectivas quando está em causa a revelação de crimes. Se não se ultrapassam leis, rigor da profissão e decência geralmente aceite na sociedade, óptimo.

As críticas de JPP e outras, incluindo as do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (que, a avaliar pelos comunicados, só vê TV e nada lê de errado nos jornais) não especificam casos concretos de abusos da TV. Este aspecto não é um pormenor: os ataques à TV foram em geral abstractos. À parte a exibição de filmes pedófilos na SIC e a insistência para que testemunhas indicassem nomes (Pedro Pinto na TVI, por exemplo), a cobertura do caso não ultrapassou os três princípios que referi: leis, rigor, decência. Os críticos esquecem que não são apenas jornalistas e testemunhas quem está sob pressão nestes casos extremos: os espectadores também, e os próprios críticos, os quais não podem ignorar que eles mesmos vêem a TV sob impacto emocional que se repercute nos seus raciocínios. A crítica de JPP não é mais "racional" do que o trabalho dos jornalistas de TV: ambas as actividades estão sujeitas à obscura mistela de raciocínio e emoção.

Tenho revisto as emissões integrais da TV generalista no caso de Castelo de Paiva, então super-criticadas por "excessos". À distância, as emissões apresentam-se contidas e sem falhas no rigor e decência. Erros? Os normais nas actividades em directo: um político "em directo" também se engana, um professor numa aula "em directo" também dá uma indicação errada, um cozinheiro "em directo" pôe sal a mais, um carpinteiro "em directo" martela a ponta do dedo.

Como é típico nos não especialistas em media, JPP só acha interessante na cobertura deste caso o que a ele lhe interessa. Não pensa que muitos espectadores percebem melhor o horror da pedofilia conhecendo a sua realidade concreta, que é como a maioria entende melhor as questões, não ao nível abstracto de comentadores e políticos. JPP esquece a multiplicidade de leituras do evento, os efeitos sociais benéficos deste jornalismo e destas reportagens e que, se leis, rigor e decência forem cumpridos, sobram muitas maneiras de noticiar que não estão de acordo com os padrões de gosto do crítico.

JPP não tem razão quando diz que após as primeiras notícias sobre o caso "tudo o resto" não é informação. Falso. Houve revelação doutros casos de pedofilia ou abusos sexuais revelados, de incúrias do poder judicial, policial e político, novos testemunhos, debates e entrevistas com (ir)responsáveis, especialistas, vítimas. Como se pode condenar em bloco a TV quando ela faz debate, isto é, pratica a ágora? Isso é útil para a sociedade, evitam-se abusos futuros, põe-se finalmente a política, a polícia e a justiça a investigar porque "a investigação criminal não é valorizada em Portugal pelo poder político", conforme disse, não um jornalista da SIC ou da TVI, mas o bastonário dos advogados (13/12).

O debate implícito neste tipo de jornalismo televisivo afasta-se da concepção aristocrática do poder perfilhada por JPP (e também por José António Saraiva, no seu editorial de 07/12 sobre a maior capacidade dos ministros de Salazar do que dos actuais): defende o poder exercido pelos melhores longe do povo para bem do povo. Em caso de crise, outros críticos da TV defendem o mesmo quando o sistema treme: veja-se o coro de apoios ao artigo de JPP por parte de adversários seus habituais! Eu prefiro defender a "democratização da democracia" proposta por Anthony Giddens, e que considero abarcar o debate televisivo.

JPP não tem razão quando diz que depois do "clamor" de "espectáculos" deste tipo "fica quase tudo na mesma". À excepção de um, todos os que refere mudaram muito. Aquaparque: o Estado responsabilizou-se, há vistorias. Viagens falsas de deputados: parece que terminaram. Moderna: em julgamento. Castelo de Paiva: em tribunal, nova ponte inaugurada em tempo recorde e inúmeras obras na zona. O caso do urânio enriquecido foi o único que a TV deixou cair - e que não teve andamento. Coincidência? Nos outros, com a pressão dos media, o Estado teve de actuar. É ao contrário do que JPP diz!

JPP também não tem razão quando afirma: "Hoje não é o poder político o principal mecanismo de impunidade dos poderosos e dos criminosos - é a comunicação social e os seus métodos." Os erros do jornalismo existem, claro, e o facto de as notícias terem um ciclo de interesse público contribui para o seu abrandamento. Mas tem-se visto que a informação leva à menor impunidade, impede o esquecimento total; os casos voltam à ribalta quando a justiça ou o poder tardam - sendo os próprios cidadãos a não deixar que os jornalistas se esqueçam.

JPP confunde des-gosto perante a forma destas notícias com a importante função cívica que a TV e a imprensa têm cumprido. Os exageros não podem servir de bode expiatório para desmerecer essa função. Os jornalistas, a começar pela tal TV "tablóide", têm estado entre os primeiros garantes de que os crimes deixam de ser acarinhados pelo Estado e que a máquina da justiça começa a desemperrar. Antes dos casos julgados é prematuro criticar a TV na base do gosto e de análises supostamente racionais. Neste caso, como na onda crítica lançada à TV aquando de Entre-os-Rios ou do 11/09, os críticos são mais precipitados do que os tele-jornalistas.

JPP e outros críticos da TV "tablóide" esquecem que em Portugal a TV é assim por não haver uma verdadeira imprensa tablóide. Que o jornalismo tablóide existe nos países desenvolvidos porque a imprensa chamada séria não serve parte importante da população. Que o tablóide cumpre uma função social. Que o jornalismo tablóide é jornalismo. Que, em tempos de crise (2ª Guerra Mundial, 11/09), jornalismos tablóide e "sério" se aproximam ou até cruzam estilos.

Artigos como o de JPP fazem o mesmo que criticam à TV: desviam a atenção do tema central. Em vez de se concentrarem nos crimes cometidos a coberto do Estado e nas formas de os evitar, fazem da cobertura mediática o essencial.

Este tipo de casos mediáticos é melhor do que pior para a democracia (e para as vítimas de crimes e desigualdades). Este tipo de jornalismo afasta-nos do Terceiro Mundo. Lá não há notícias deste género, não há escândalos mediáticos pois não há liberdade para os denunciar; lá não se pode romper o sistema de classes. Prefiro estes casos, com seus exageros, ao silêncio do Terceiro Mundo. Julgo que para chegarmos à "terceira via" no jornalismo, que desejo tanto como Cristina Ponte (05.12), teremos primeiro de sair deste Portugal terceiro-mundista onde o Estado despreza a construção duma ponte no interior e acarinha a pedofilia contra os mais pobres dos mais pobres.