Eduardo Cintra Torres

A Dessacralização da Antena 2


Quando falamos de uma rádio cultural entramos num terreno que em Portugal pertence às vacas sagradas: a cultura!, a perfeita, a pura, a divina, a infalível! Portugal tem tal complexo de inferioridade perante a coisa cultural que em alguns domínios criticar é crime.

Um texto de José Lebre de Freitas (PÚBLICO, 27.11) motivou cartas de apoio de leitores (Diogo Freitas do Amaral, 30.11), e Ana Anjos Mântua (01.12). Tratava de uma questão sensível aos que gostam de música clássica: o futuro da Antena 2, da RDP.

A carta de Freitas do Amaral era um pouco exagerada, pois mencionava «a prevista extinção da Antena 2». Ou o professor sabe mais do que nós ou o seu entusiasmo pela ópera o levou a um clímax wagneriano - mas daqueles falsos, porque em nenhum documento ou declaração se prevê a extinção do canal da RDP dedicado à cultura.

Os três textos partem da louvável defesa da única rádio nacional hertziana de música clássica, prudência sedimentada em casos passados em áreas como a cultura, ambiente, e património, em que as soluções do poder político foram piores que os problemas. Desconhecendo-se as intenções do actual governo, o articulista e os leitores pretendem, e bem, evitar uma decisão errada na Antena 2.

Nenhum deles, porém, refere uma falha básica do serviço público prestado pela Antena 2: o incumprimento da universalidade ao não chegar a todos os portugueses; em várias áreas, perto e longe da capital, a emissão chega em péssima qualidade; além disso, esbanjou milhões num serviço digital que ninguém ouve, cujo sinal só chega a parte do país e exige equipamentos caríssimos. Não chegando a Antena 2 analógica a todos, o cumprimento do princípio da universalidade deveria ter sido preocupação basilar das últimas administrações. Não foi.

Por outro lado, não se pode esquecer a hipótese de a RDP ser mal gerida e poder prestar melhores serviços ao povo português com menos dinheiro. O problema da gestão do dinheiro público deve estar sempre presente na análise do serviço prestado por qualquer entidade pública. A RDP tem beneficiado de sobre-orçamentação e é obrigação dos observadores anotar, como se faz com a RTP, onde há desperdício do dinheiro de todos.

Estes aspectos básicos - universalidade e boa gestão do bem público - não são os únicos silenciados. Também a qualidade da programação o é. Quando falamos de uma rádio cultural entramos num terreno que em Portugal pertence às vacas sagradas: a cultura!, a perfeita, a pura, a divina, a infalível! Portugal tem tal complexo de inferioridade perante a coisa cultural que em alguns domínios criticar é crime. A Antena 2 nunca critica e nunca é criticada. À parte dois artigos que aqui publiquei no passado, não recordo qualquer outro texto aprofundado sobre a nossa única estação cultural, paga por todos.

Esta atitude de que a coisa cultural é toda fantástica, e, portanto, está acima da crítica existe há muito na própria Antena 2. Ouvimos os seus programas e ficamos espantados com a maravilha de todas as iniciativas culturais em Portugal, todos os filmes são uma maravilha, todos os livros são bons, todos os músicos, concertos, peças de teatro, tudo é maravilha. A ladainha da Antena 2 à coisa da cultura é especialmente visível na divinização de tudo o que se refere ao Teatro Nacional de S. Carlos. Com a actual direcção da Antena 2, a ópera ganhou espaço privilegiado e quase varreu a música de câmara. Não se liga a rádio sem ouvir uma gravação histórica fanhosa duma ópera intragável dum Donizetti de terceira, sem valor excepto histórico-científico. São vários os programas sobre ópera e cantores líricos e é enorme o tempo dedicado ao S. Carlos, num desequilíbrio a corrigir.

A crer na propaganda contínua, tudo o que se ouviu nos 209 anos do S. Carlos foi uma maravilha. As referências são acríticas e enganadoras, pois já houve muita porcaria no S. Carlos e não se deve iludir os ouvintes. O mesmo se pode dizer de muitas actividades culturais que ocorrem hoje no país. É evidente que, em agenda, as iniciativas devem ser mencionadas e os ouvintes convidados a usufruir delas. Mas daí à ausência de crítica posterior é um passo que nos afasta da maioridade cultural. O programa da RTP Acontece adoptou também em algumas áreas da actividade cultural e editorial uma atitude acrítica. E, como dizia o pintor Guilherme Filipe nos anos 20, numa frase espantosa e iluminante, «Não há arte em Portugal porque não há crítica!»

Também não podem os ouvintes da Antena 2 ser complacentes com o seu estilo antiquado. Apesar dalguma ligeira mudança, consigo identificar este estilo com a Emissora Nacional que ouvia em criança, nos anos 60. Se alguma austeridade fica bem a uma rádio cultural, também é certo que a cultura se define pela perpétua mudança, pela aventura sem fim: ouve-se às vezes a Antena 2 e parece que estamos numa sessão de cumprimentos no salão nobre dum município de província nos anos 50.

A Antena 2 tenta fugir desse estilo, mas mais devagarinho do que um caracol com ambas as pernas partidas. E segue uma via criticável, acentuando o carácter de talk-radio, como referi há anos. Ao contrário do que escrevem os leitores, é às vezes difícil ou impossível ouvir música clássica na emissora: fala-se um pouco demais, excepto de madrugada, quando fecham a loja e deixam os CDs a tocar. Ficaria bem alguma parcimónia nos programas de divulgação científica, que deveriam passar para a Antena 1 (e modernizar-se). Há programas, de especialistas que pouco percebem de rádio, de audição difícil. Mesmo os programas da manhã e da tarde (Despertar dos Deuses e Ritornello) poderiam beneficiar de mais música e entrevistas mais eficazes. O programa de poesia e música, Os Sons Férteis, continua servido por uma péssima leitura dos poemas. São alguns exemplos.

Refrescar a Antena 2, onde há também bons programas, não significa piorar mas melhorar a rádio. As alterações possíveis não têm que ver com os conteúdos musicais nem com a indicação do que se está a ouvir. É evidente que uma emissora deste tipo tem de apresentar e anunciar a Paixão segundo S. Lucas, de Penderecki, como refere a leitora Ana Anjos Mântua. Tem de passar a música erudita do presente e a música clássica do passado hoje popular. Tem de ser equilibrada, e não exagerar na ópera ou no concerto de violino de Brahms. Tem de indicar as obras que toca e situá-las historicamente, tem de prestar informação cultural e entrevistar personagens culturais. Mas não precisa de ser antiquada, nem talk-radio, nem acrítica.

A Antena 2 é um instrumento de difusão de grossa fatia da melhor música do Ocidente. Esta música não é de elites, pois o gosto pela melhor música atravessa os grupos sociais, escalões etários ou económicos. Nem se põe a questão de ser uma rádio minoritária, porque todas as rádios de Portugal - todas - são minoritárias. As maiorias morreram, graças a Deus. Mas a estação não pode ser transformada numa vaca sagrada. Muitas pequenas e grandes melhorias são possíveis, a começar pela cobertura universal analógica do território e pelo refrescamento da programação e do estilo.