Eduardo Cintra Torres

Excessos da TV Ou Receios do Poder?


Pedem aos jornalistas que se calem! Desapareçam da vista, senhores jornalistas, porque se forem mais longe estarão a pôr em causa o poder do poder. Este "pedido" de contenção aos jornalistas é bem mais grave do que parece o "bom senso" que implica: pede-se aos jornalistas que deixem de ser jornalistas.

No caso Casa Pia, houve excessos na televisão? Claro. A pudica deputada Maria Elisa tem razão quando diz que há pormenores escabrosos, mas não tem razão nenhuma em querer expurgá-los por haver crianças a ver telejornais. Porque não se pode dizer a verdade sem alguns pormenores escabrosos, como qualquer advogado ou juiz lhe poderá explicar. Porque a televisão nem é pai nem mãe dos meninos que vêem telejornais que não deviam ver. É absurdo defender a autocensura de informação televisiva relevante pelo facto de haver a hipótese de pais não saberem educar os filhos.

A TV exagerou nos comentários desnecessários de Rodrigo Guedes de Carvalho, fazendo julgamentos sumários, ou na incrível repetição de reportagens dentro do mesmo Jornal Nacional da TVI (28.11). A TV exagerou em não precaver a linguagem: deveria dizer sempre o "alegado" ou "o presumível". São os detalhes que fazem da boa informação uma excelente informação. A TV exagerou quando pediu nomes de pedófilos.

A TV exagerou na novelização, como fez a SIC pedindo a entrevistados que não contassem tudo porque tinham de lá voltar no dia seguinte para contar o resto. A SIC viu no caso uma ocasião de ultrapassar a "novela da vida real" do Big Brother por uma verdadeira novela da vida real. Tão real que, num microssegundo, Teresa Guilherme e tudo aquilo da "casa" da Venda do Pinheiro se tornou patético, ínfimo, ridículo.

A SIC exagerou ao fazer do rodapé no Jornal da Noite desagravo das mensagens "vox populi" em versão SMS ou "email". Pela primeira vez na TV portuguesa, o comentário político foi consistente e continuadamente entregue aos espectadores.

A SIC exagerou com a doentia, voyeurística apresentação na íntegra dos filmes pedófilos do pediatra autoproclamado "artista", totalmente desnecessária - e ainda por cima repetida no dia seguinte.

Mas os excessos da TV não foram tantos quantos parecem ao ler-se o coro de críticas. Ai de nós se, ao começarmos a criticar a TV pelos exageros, pretendêssemos que ela não revelasse mais!

Se em algum momento pareceu que a TV se aproximou de um julgamento popular (e eu acho que não), a explicação é tristemente simples: o Estado não fez o julgamento no tribunal. Aqueles homens foram à TV violentar a sua intimidade, revelando um passado que queriam esquecer, precisamente porque em 20 anos o não puderam dizer num tribunal. Houve suspeitas sobre pessoas levantadas nos ecrãs por nunca terem sido bem investigadas pela polícia de investigação e eventualmente levadas à barra do tribunal.

Os jornalistas cumpriram a sua missão. Na ausência da justiça democrática, foram os reveladores da informação necessária para que a justiça recomeçasse a trabalhar. A TV tablóide foi mais democrática do que o Estado em décadas. Houve, felizmente, intervenções reconhecendo-o, como as dos Dupond & Dupont do Telejornal de domingo na RTP1.

A questão "tablóide" coloca-se em termos classistas: de facto, o que a TV fez foi dar voz aos mais fracos, ao contrário do que faz algum jornalismo de referência dentro e fora da TV. A direcção de informação da SIC deixou os mocassins engraxados de ironia nos corredores do poder e desceu à rua a cumprir uma tarefa primordial do jornalismo em democracia. É certo que há questões nebulosas que gostaríamos de esclarecer (por quê agora?, pretende atingir-se alguém em especial?) mas isso não é prioritário perante o serviço prestado à democracia e principalmente aos inocentes violentados e aos que, por causa da revelação pública, não chegaram a ser violentados.

É lamentável, como sublinhou João Amaral no "Expresso" (30.11), que perante um escândalo desta dimensão se atirem pedras à informação. É bem lamentável, acrescento, que jornalistas se apressem a condenar jornalistas que prosseguem na escavação dum caso gravíssimo que a democracia não se pode permitir que fique em águas de bacalhau.

Não se pode condenar a TV neste caso sem condenar primeiro o regime. Porque é o país em que vivemos que justifica a TV que temos. Se vivemos num país em que, num caso destes, as televisões acusam cedo de mais, são pouco rigorosas nos detalhes, ou se lançam sobre os "da alta", esse é o preço a pagar por vivermos num país em que os políticos ignoram os crimes, a polícia e a justiça arquivam e acusam tarde de mais, ou são rigorosos de mais nos detalhes, como o Supremo Tribunal Administrativo, ou rigorosos de menos, como a PJ arquivando queixas sérias. Em que todos - políticos, polícia, tribunais e até jornalistas - quase sempre protegem ricos e poderosos e ignoram, como escrevia um espectador da SIC, o "silêncio dos inocentes" dos pobres porque são pobres.

O poder sabe-o bem, como implicitamente o revelou Jorge Sampaio na sua certeira intervenção e o procurador Souto Moura na sua táctica entrevista no Jornal 2 (28.11). Mas Souto Moura, e depois um juiz no Jornal 2 e a nova provedora da Casa Pia (29.11) deram um mote que alguns jornalistas estão prontos a seguir: o de que, tendo a imprensa denunciado o caso, ele fica agora bem entregue ao poder judicial. Pedem aos jornalistas que se calem! Desapareçam da vista, senhores jornalistas, porque se forem mais longe estarão a pôr em causa o poder do poder. Este "pedido" de contenção aos jornalistas é bem mais grave do que parece o "bom senso" que implica: pede-se aos jornalistas que deixem de ser jornalistas. Que se demitam da sua missão, que ainda agora começou. Se a justiça se viu agora obrigada - e obrigada é o termo - a retomar as investigações foi porque os jornalistas revelaram o caso na TV. É melhor que não parem.

O pedido de contenção da liberdade vem na senda de outros que mostram como, perante uma imprensa cada vez mais concorrencial e livre, as elites e o poder andam nervosos. Desde há meses - a propósito da Moderna, da PJ e do Metropolitano - têm surgido estranhas vozes na política, na magistratura e no comentário político pedindo contenção aos jornalistas, pedindo "bom senso". Isto é, pedindo-lhes que não digam mais. Que não façam estalar o verniz. Que não digam o que sabem e está provado. Para salvar o regime tal como ele está. Só que o regime não está bem. O regime alberga crimes dos fortes sobre os fracos. E o regime alberga corrupção. Eu pediria exactamente o contrário aos jornalistas: que digam tudo o que souberem e esteja provado, que, dentro das regras e com muito rigor, não defendam eventuais criminosos por serem poderosos, que revelem tudo o que puderem e não poupem com "bom senso" o regime como ele é hoje.

Veremos se o nosso regime é o sistema que permite a porcalhota ou se é o sistema democrático onde a justiça é cega, não por ignorar os crimes dos poderosos, mas cega porque, como desejavam os antigos, aplica a lei a todos. Isso é condição "sine qua non" da democracia justa. Neste caso, a TV e o jornalismo português, com exageros e defeitos, resgataram a sua própria honra e cumpriram a democracia. Veremos como se desempenha o regime democrático. Veremos se o regime vai até ao fim, como pediu o Presidente da República, ou se fica aquém da televisão que tem.