Eduardo Cintra Torres

A TV de Regresso ao Mundo Real


Quando as notícias rebentam na SIC, todos sabemos que o Estado não poderá sair incólume das reportagens. Logo surgem as acusações de "tablóide" à televisão, sem a qual, bendita televisão!, esta estória poderia ter o mesmo destino da notícia do "Tal & Qual" de 1982. Se viesse apenas no "Expresso", o Estado fingiria que nada era, ficava tudo entre o Estado e os leitores de classe média deste jornal.

Como o país mudou em 20 anos! Então, os políticos - Presidente da República, governantes, oposição - não ligavam à pedofilia na Casa Pia, deixando o caso morrer como se não estivessem em causa vidas de crianças. Então, a RTP gravava declarações de crianças da Casa Pia acusando abusos sexuais e o jornalista nem sequer dava por isso, como o próprio reconheceu agora com ingenuidade (RTP, 28.11). Então, dois jornais ("Portugal Hoje" e "Tal & Qual") referiam-se à pedofilia e o resto da classe jornalística deixava o assunto morrer como se fosse mais um caso de agenda mediática, daqueles que mudam com o cair da folha do calendário. Os jornalistas, como José António Lima ("Expresso", 30.11) que condenam Teresa Costa Macedo por ela só agora ter voltado ao assunto não se podem esquecer do silêncio do próprio jornalismo nas décadas após as notícias do "Portugal Hoje" e do "Tal & Qual".

O esquecimento dum caso desta magnitude já não é hoje possível. Mas custou. Muito tempo. Muito abuso de crianças. Muitas vidas abaladas. E custou pelo menos uma vida, duma criança que se suicidou debaixo da linha do comboio, à frente dos Jerónimos, a casa da pátria.

A crítica da televisão neste caso não pode deixar de impregnar-se de crítica da sociedade e das instituições: porque é isso, afinal, o que a televisão vem fazendo desde sábado, dia 23, quando o "Expresso" e a SIC arrancaram com a primeira reportagem. Quando um país entra em crise, como aconteceu, os órgãos de informação adquirem maior importância e inscrevem-se na crise: a crise passa a ser também dos "media". Daí que rapidamente a TV tenha passado a tema central no caso. "A excitação provocada por uma crise em diferentes sectores da sociedade também atinge os 'media'", escreve um especialista no tema, Marc Raboy.

As primeiras notícias logo permitiram perceber que o caso da pedofilia na Casa Pia (e muito para além dela) abalaria a sociedade, a justiça, a opinião pública, as instituições. No dia 28, o "DN" comparava o caso, no seu impacto político, à revelação do escândalo Watergate pelo "Washington Post" na década de 70 (é uma inferência exagerada dizer que o "DN" comparava Felícia Cabrita a Bob Woodward, do "Washington Post", como fez Ana Sá Lopes, PÚBLICO, 30.11). Watergate levou à demissão do presidente Nixon. Veremos se cá na aldeia chegamos às mais altas hierarquias do Estado e se, caso haja suspeitas disso, a sociedade e o regime estão prontos a enfrentar a dura realidade.

As notícias dão conta do caso, mas não dizem tudo. Há um lado latente, mas não suficientemente revelado. Em primeiro lugar, as notícias e comentários não sublinham que os nossos impostos andaram a pagar a pedofilia, avulsa ou organizada (a SIC titula o caso de "Rede de pedofilia"), numa organização do Estado, por incúria e irresponsabilidade do Estado. Mais: a displicência do Estado foi ela mesma criminosa e as vítimas poderiam agora, se quisessem, processá-lo. Foi por a Casa Pia ser do Estado que isto aconteceu. Se a pedofilia tivesse ocorrido num colégio privado, imediatamente os seus responsáveis a teriam resolvido. Na Casa Pia, a pedofilia inscreveu-se como parte do sistema.

Em segundo lugar, as notícias não sublinham a dramática dimensão de classes que há no caso. Embora toda a audiência a subentenda, esta dimensão classista não é dita. Se várias pessoas chamaram a atenção, como Francisco Louçã, que as vítimas foram "os mais pobres dos mais pobres", ninguém disse que este caso só foi possível apenas e precisamente porque as vítimas foram os escorraçados da sociedade, os mais fracos de todos e os desprezados pelo Estado. Se a pedofilia tivesse ocorrido num liceu das Avenidas Novas ou da Foz do Porto, decerto logo se teria resolvido e, até, abafado.

O latente conflito de classes do caso ocorre nas entrelinhas das próprias notícias e atravessa todos os comentários: toda a gente sabe, do cidadão pobre à mais alta hierarquia, que isto aconteceu assim porque se tratava de meninos pobres numa instituição estatal, na qual a mais tenebrosa perversidade se pode instalar a coberto da burocracia e do regulamento, como já sabíamos pelos depoimentos legalistas dos responsáveis dos campos de concentração nazis. Toda a gente sabe que a polícia de investigação e a justiça não agiram no caso da Casa Pia porque se tratava de gente "da alta", dum lado, e de filhos das ervas, do outro. Que os carros que paravam à porta da Casa Pia eram de boas marcas, talvez de senhores diplomatas, enquanto os meninos nem roupa sua tinham para vestir. Que os governos não viram nunca ali um problema de crime no seio do Estado porque as vítimas eram os pobres e não eram filhos das elites.

E, assim, quando as notícias rebentam na SIC, todos sabemos que o Estado não poderá sair incólume das reportagens. Logo surgem, no primeiro minuto, os defensores da "honra" da Casa Pia, entre eles o estranho e felizmente demitido Provedor, como se defender a honra da Casa Pia não fosse agora varrê-la da escumalha e esclarecer tudo até ao último detalhe. Logo surgem as acusações de "tablóide" à televisão, sem a qual, bendita televisão!, esta estória poderia ter o mesmo destino da notícia do "Tal & Qual" de 1982. Se viesse apenas no "Expresso", o Estado fingiria que nada era, ficava tudo entre o Estado e os leitores de classe média deste jornal. Mas veio a SIC - que recuperou em dois dias a sua relação com o povo, perdida há dois anos - e vieram a reboque a TVI e a RTP: e o poder percebeu que (oh horror!) agora o povo já sabia e era preciso fazer alguma coisa para segurar as instituições dos poderosos.

Em apenas cinco dias, a Polícia Judiciária encontrou documentos dados como perdidos de não sei quantas queixas! Que Polícia esta! Foi preciso sair a primeira notícia para deter um suspeito! Em apenas cinco dias, o Supremo Tribunal Administrativo lamentou-se que houvesse vírgulas mal postas num documento que o levou a reintegrar o alegado pedófilo principal. Se ao menos as vírgulas não estivessem mal postas! E se os governos lhe tivessem enviado os documentos outra vez, com as vírgulas no sítio! Supremo patético!

Os marcadores de classe, porém, permanecem, mesmo neste belíssimo jornal em que escrevo. Leia-se a Nota da Direcção Editorial em que se pretendeu, com toda a razão, evitar "linchamentos públicos": nela se trata um suspeito pelo seu "petit nom" de "Bibi" e assume-se o homem, implicitamente, como envolvido, apesar de não ter sido ainda julgado; já um outro suspeito não é dado como envolvido, e nem sequer se lhe dá nome, é apenas "um diplomata". Claro! Como poderia um diplomata, um senhor tão fino, estar envolvido numa coisa destas? Só mesmo um "Bibi"! Mais: a mesma nota apelando à contenção refere que há nomes de supostos envolvidos que são "verosímeis" e outros que são "inverosímeis". Como se pode saber tal antes da investigação?

O Olho Vivo regressa amanhã com a continuação: Excessos da TV ou receios do poder?