Eduardo Cintra Torres

Questões de Coerência


O ministro do PSD defendeu a reintrodução soft dum imposto que o PSD aboliu, extinção que a «esquerda» sempre lamentou; e a «esquerda» criticou a reintrodução e aumento dessa taxa cujo fim considerou a origem dos males da RTP. Isto tem mais piada que o Contra-Informação.

O ministro Morais Sarmento terá lançado a ideia da reintrodução da taxa da RTP antes de anunciar um pacote de acção e legislativo no sector de forma a sentir a opinião pública. Então, aqui vai: sou contra. A proposta surpreende. Primeiro, a taxa foi abolida pelo seu colega Marques Mendes num anterior governo PSD; segundo, a reintrodução não consta da agenda política nem do programa do governo; terceiro, o eventual aumento de 10 a 15 por cento contraria ainda mais o programa de governo; quarto, o facto de a taxa da RDP ser exagerada não justifica que o dinheiro dos consumidores de electricidade seja desviado para a RTP.

A proposta assenta no absurdo da taxa: os consumidores têm pago a engorda duma empresa pública que mesmo sorvendo todo o dinheiro que pode não consegue gastar o total arrecadado. Ano após ano, sobrou dinheiro. É a esse excedente que políticos e comentadores sem vergonha de insultar a inteligência dos cidadãos costumam chamar os «lucros» da RDP.

Por mim, discuto não apenas a desfocagem da taxa como a questão central: quais os serviços públicos que a RDP presta hoje nos seus vários canais e no seu inútil serviço digital, capricho caríssimo do anterior presidente da empresa? A RDP tem de ser refundada, como a RTP.

A lógica da proposta de Morais Sarmento é tão-somente contabilística: se há dinheiro a mais, não o vamos desperdiçar, passa-se da RDP para a RTP. Não é, portanto, uma proposta fundamentada politicamente. E é incompleta: haverá para a RTP, em simultâneo, dotação orçamental, taxa e publicidade? A oposição teve razão em indicar que falta informação. Mas também deu vontade de chorar ver toda a «esquerda» (PS, PCP, BE) a defender a taxa da RDP - o imposto, como lhe chamou e bem Vitalino Canas - tal como está, isto é, a defender o desperdício do dinheiro dos consumidores numa empresa cuja bondade de serviços públicos e de gestão está por provar.

Em resumo: o ministro do PSD defendeu a reintrodução soft dum imposto que o PSD aboliu, extinção que a «esquerda» sempre lamentou; e a «esquerda» criticou a reintrodução e aumento dessa taxa cujo fim considerou a origem dos males da RTP. Isto tem mais piada que o Contra-Informação.

Duas tragédias, uma imagem

«Não há nada a dizer. É uma tragédia»: as palavras do primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, dizem tudo, na sua aparente simplicidade. Dizer que a morte de dezenas de crianças numa escola mal construída que ruiu ao tremer da terra foi uma tragédia é dizer o irremediável, dizer a inocência das vítimas, é valorizar o inescapável dramatismo inerente à existência humana.

A fotografia de Mario Leporte (Reuters) que o PÚBLICO divulgou em 02.11 acentua a realidade trágica do acontecimento de San Giuliano di Puglia. O fundo é negro e o mais que se vê salta desse pano dramático: um corpo, embrulhado num lençol branco sob uma padiola; uma estrutura inclinada, à direita, revelando traços da destruição.

A composição da fotografia é notável e não é o medo do cinismo que nos impede de notar o lado tremendamente estético que o evento trágico assume: as linhas de força, como na pintura, chamam-nos o olhar para o corpo duma vítima inocente que é transportado com todos os cuidados e atenções de várias pessoas, como os trabalhadores das equipas de salvamento à esquerda e ao centro.

Do lado direito, num plano superior, sobressaem dois grupos, seis homens: três deles inclinam-se, ajudando a deposição do corpo; dos outros três, dois homens dum estatuto provavelmente mais elevado (um deles com o nó da gravata desapertado, acentuando a descompostura o momento trágico) assistem como nós que olhamos a fotografia à acção descrita; finalmente, há um trabalhador, virado para nós, como que de joelhos (está num buraco do telhado) e de braços abertos: é ele quem nos chama para dentro da cena e é ele que nos dá a dimensão trágica do evento.

Foi este homem de braços abertos e a composição perfeita da fotografia que de imediato me trouxeram à memória a Deposição, de Caravaggio, da colecção da Pinacoteca do Vaticano: é o mesmo tema, o mesmo momento único da descida do corpo da vítima, o mesmo lençol, são, sensivelmente, as mesmas linhas de força, o mesmo claro-escuro, os mesmos planos diferenciados (de onde e para onde se desce o corpo), é o alguém que nos chama para o interior do quadro (Nicodemo), é o alguém que abre os braços acentuando a dimensão inelutável da tragédia (neste caso Maria Cleofas).

Tal como na obra de Caravaggio (1602-4), o observador da fotografia está num plano próximo daquele onde o corpo será deposto: ali o túmulo de Cristo, aqui o chão de San Giuliano di Puglia.

Não há que admirar: o sismo de Itália foi uma tragédia e, na mesma Itália, Caravaggio pintava um momento dos mais dramáticos (anterior à Ressurreição, portanto), da história de Cristo, história que é na versão bíblica, depois dos dramas representados em Atenas, o ressurgimento da tragédia na literatura. Tal como a história de Cristo, a morte em San Giuliano di Puglia é um evento do mundo real que se transfigura em tragédia e não escapa à imediata estetização.